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A doce festa das crianças e uma fábula de tolerância pelas ruas

Distribuição de saquinhos no Cosme e Damião desenha cidade menos embrutecida, de convivência mais amena e harmonia entre religiões unidas na celebração aos santos gêmeos

ODS 16 • Publicada em 28 de setembro de 2023 - 01:29 • Atualizada em 28 de setembro de 2023 - 18:25

Se tem patota, Ibeji e ajeum

Salve, Cosme e Damião, Doum

Ê, que bela quitanda, quitandinha de erê

Seu balancê tem quitandinha de erê

Samba-enredo da Grande Rio para o Carnaval de 2023. Autores: Arlindinho, Diogo Nogueira, Gusttavo Clarão, Igor Leal, Mingauzinho e Myngal

Para tourear a canícula que a crise climática impõe ao início da primavera, o pequenino brasileiro tira a camisa, mas mantém a energia no pique vigoroso e desembestado, ao avistar mais um saquinho de doces. O 27 de setembro, quarta-feira de São Cosme e Damião, produz, ano sim ano também, o feitiço que revive a mais lúdica tradição: crianças, como aquele menino, livres por ruas, praças e calçadas, em busca das guloseimas que celebram os santos gêmeos. Lindo demais.

Leu essa? Vitória doce

A metrópole segue violenta, poluída, caótica, intolerante (inclusive nos adultos evangélicos, que proíbem os filhos de entrar na brincadeira; a frustração nos olhos infantis corta o coração), mas ainda se permite a açucarada fábula anual. Neste dia, são revogados protocolos da segurança cotidiana. Desaparecem temores embutidos em estranhos que chamam; forjam-se parcerias com desconhecidos na correria festeira. Pelos santos gêmeos, está tudo liberado.

Como no Dia de Iemanjá na Bahia, o de Cosme e Damião no Rio não é feriado – nem precisa. O ritual toma as ruas e a população se ajeita. Ainda ensina a tolerância, com católicos e macumbeiros juntos na distribuição e no recolhimento dos saquinhos brancos, salpicados do vermelho e verde dos santos.

Saquinhos de Cosme e Damião recheados de doces: vitória da tradição. Foto: Reprodução

Na religião do papa, Cosme e Damião, gêmeos, foram médicos e missionários que curavam todo tipo de doença gratuitamente. Teriam começado aos 7 anos e curado muitas pessoas, até virarem mártires por aceitar Jesus Cristo. Na umbanda, são os orixás Ibejis, filhos gêmeos de Iansã e Xangô, criados por Oxum. Sua celebração, espécie de agrado às divindades, presenteia crianças – os erês, na mitologia afro-brasileira – com doces para trazer saúde aos devotos.

A mistura ecumênica prevalece acima de burocracias eclesiásticas. A Igreja Católica, bobamente, inventou que o dia dos santos gêmeos é 26 de setembro (a véspera da data verdadeira), para se afastar do povo de axé. Tolice – o povo continua firme no seu preceito e vai todo mundo junto para a rua.

E tem milagre: é o único dia do ano, da vida inteira, em que meninas e, especialmente, meninos pretos podem correr à vontade, sem a ameaça da polícia atirar primeiro e perguntar depois. A alegria de receber os saquinhos supera até a opressão violenta do Estado racista, que dá trégua para a distribuição espontânea e apaixonante.

A festa, aliás, tem sua força nos subúrbios e periferias – nas áreas mais ricas, as crianças são crescentemente apartadas de tradições que pavimentam a sociabilidade. Uma lástima. No sopé das favelas ou nas praças de regiões mais pobres, está o povo que sabe se divertir.

E aí se desenha o Brasil necessário, de crianças que não estão trabalhando nas esquinas nem com medo da violência, mas engajadas na mais despojada – e doce – diversão. Ouvir o tocante “dá um pra mim, tio” ou o eufórico “obrigado, tia” esquenta o coração e reacende a esperança de que menos perversidade e mais contentamento são possíveis.

E o pequeno corredor sem camisa tem (como muitos iguais a ele, mais velhos, mais novos) potencial para ir às Olimpíadas. Só precisa vencer o Brasil real para chegar lá – com a bênção de São Cosme e São Damião, fica menos difícil.

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