Completamos 100 dias desde que os ataques das forças militares israelenses contra a faixa de Gaza começaram. Cem dias. O cenário de legitimação da morte sangrenta sustentado pelo argumento do governo israelense de que os ataques são voltados contra o Hamas. O fato é que, em linhas gerais, a matemática da morte tem sido avassaladora. Aproximadamente 23.300 palestinos foram assassinados pela guerra, uma média de 230 pessoas por dia. Lembremos sempre que, estatisticamente, 70% dessas mortes são de mulheres e crianças. Um cinzento genocídio de ataques e bombardeios autorizados no tempo presente.
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Lembro que a suspensão da celebração do último Natal em Belém, cidade do nascimento de Jesus segundo a Bíblia, me marcou muito. Uma vez que o fim do conflito não estava entre as previsibilidades, não havia o que celebrar. Enquanto o mundo vivenciava a tradição do Natal, a prefeitura de Belém anunciou o cancelamento de todas as festividades natalinas como um gesto em solidariedade às vítimas da guerra.
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Veja o que já enviamosEm um mundo de conflitos simultâneos e múltiplas crises atravessadas pelo nosso tempo, me pergunto como a gente segue vivendo normalmente enquanto uma guerra dessa magnitude acontece? Como será que os nossos mecanismos individuais operam entre a travessia de notícias e constantes atualizações de um pesadelo sem previsão de fim? Será que nos tornamos insensíveis? Ou seria uma anestesia diante da nossa impotência? Será que ter fé é realmente suficiente para que as autoridades consigam intervir politicamente? Será que todas essas perguntas contém um tanto de inocência e ignorância?
Fato é que estamos de mãos atadas. Enquanto uma guerra acontece no Oriente Médio, outra guerra civil também acontece no Equador. Na última semana, cenas de pânico tomou conta de cidades do país, mostrando o poder do crime organizado e do tráfico internacional de drogas. No meio dos protestos contra a suspensão dos subsídios aos combustíveis, o presidente equatoriano Daniel Noboa declarou “estado de exceção”, que é um mecanismo existente na Constituição acionado em contextos de calamidade, e autorizou a intervenção das forças armadas no sistema prisional e policiamento nas ruas pelos militares. Parece que é só o começo de uma série de ondas de violências relacionadas aos fatores sociais e econômicos que acentuam ainda mais o conflito na América Latina.
Enquanto uma guerra acontece, o Rio de Janeiro sofreu com enchentes e alagamentos violentos no último domingo. Enquanto chovia em Brasília ontem, onde moro atualmente, chovia também no Rio de Janeiro, de onde sou. A diferença era a brutalidade das águas das chuvas e as infraestruturas urbanas. Na capital e na Baixada Fluminense do Rio, idosos foram carregados em latas de lixo e pessoas foram resgatadas em colchões. Uma mulher em trabalho de parto foi resgatada por um barco em meio às enchentes. Outra mulher desapareceu em um rio. Deslocamentos arriscados com crianças foram feitos no auge do desespero do temporal. Há relatos de que, em algumas residências, o alagamento bateu quase no teto. Casas viraram entulhos. Famílias majoritariamente pobres perderam tudo. Doze pessoas morreram até agora. Traumas, feridas e sofrimento.
Enquanto uma guerra acontece, temos um ano de eleições dos Estados Unidos que pode mudar a geopolítica do clima no mundo inteiro. Se Donald Trump for eleito novamente, todos os avanços, tratados e políticas climáticas adotadas durante o governo Biden certamente serão suspensos. O que nos faria regredir em uma escala preocupante. Tudo o que conquistamos nos movimentos de justiça ambiental e climática seriam colapsados por um velho-novo governo negacionista.
Enquanto uma guerra acontece, o continente africano, historicamente invisibilizado e silenciado, segue imerso em violações de direitos e crise humanitária. Simplesmente milhões de pessoas na região do Sahel e da África Ocidental enfrentam uma crise absurda de insegurança alimentar devido às chuvas e à desertificação. Sabemos que tudo isso não é de hoje, mas há de se reconhecer que houve um agravante significativo entre junho e dezembro de 2023. E, como vivenciamos uma emergência climática, não existem muitas perspectivas otimistas para a população africana.
Enquanto uma guerra acontece, as festividades do Carnaval brasileiro estão confirmadas. E não escrevo em nenhum tom de julgamento ou moralismo. Isso não me cabe. Apenas sinto-me profundamente imersa em uma reflexão de como a vida segue em meio a tantos conflitos sociais, políticos e econômicos no Brasil afora. A nossa cultura segue viva, com investimento de muitos milhões de reais destinados aos grupos carnavalescos dos estados do país. Enquanto alguns dançam e celebram aqui, ataques aéreos e bombardeios acontecem do outro lado do mundo. Enquanto nós, brasileiros, planejamos viagens de descanso no feriado prolongado, famílias precisam se proteger e obedecer ao toque de recolher no Equador.
Minha conclusão é um tanto radical. Se existe um meio de seguirmos normalmente nossas vidas enquanto guerras acontecem, honestamente, eu desconheço. E digo mais: a paz não está no horizonte. Pelo menos não nessa vida. Cabe a nós vivenciar os surtos de harmonia e micro instantes pacíficos, pois a aura de guerra nos ronda sistematicamente desde sempre. E, pelo visto, para sempre.