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A eleição, seus novos personagens e a democracia eternamente em risco

Pablo Marçal venceu ao firmar a baixaria absoluta como estratégia de campanha. Além de deixar sinais sombrios para o futuro

ODS 16 • Publicada em 3 de outubro de 2024 - 17:37 • Atualizada em 9 de outubro de 2024 - 10:03

Como se diz hoje em dia, pega a visão: a democracia é frágil e delicada, está sempre sob risco de escoriações graves. Precisa, assim, de cuidado permanente, atenção eterna e vigilância incansável contra seus muitos inimigos. O Brasil valoriza o estado de direito muito menos do que deveria – e um novo personagem nadou de braçada nos últimos meses, atestando (de novo) nosso endêmico descuido.

Leu essa? As eleições municipais e a democracia

O país atravessou a campanha municipal sob a sombra da aventura Pablo Marçal. O ex-coach aplicou na busca pelos votos os truques utilizados para acumular, em rapidez artificial, fortuna de quase R$ 200 milhões (ao menos a parte declarada à Justiça Eleitoral). Está no bolo para sobreviver ao segundo turno em São Paulo.

A cadeirada de José Luiz Datena em Pablo Marçal, no debate da TV Cultura: cena mais importante da política brasileira em 2024 sinaliza tempos terríveis para a democracia. Reprodução
A cadeirada de José Luiz Datena em Pablo Marçal, no debate da TV Cultura: cena mais importante da política brasileira em 2024 sinaliza tempos terríveis para a democracia. Reprodução

Temperando o desfile de soluções fáceis (e, por isso, irreais) com a retórica dos líderes neopentecostais – os coronéis da fé, na imbatível definição do deputado Pastor Henrique Vieira –, o candidato do invisível PRTB inventou uma espécie de Teologia da Prosperidade 2.0. A maior e mais rica cidade do país parar nas mãos dele tem, para seguir nas metáforas bíblicas, traços de apocalipse. As pesquisas aferem o risco como pequeno – Marçal, ainda que em terceiro, segue tecnicamente empatado com Guilherme Boulos (PSOL) e Ricardo Nunes (MDB), o atual inquilino da prefeitura e favorito à reeleição.

Mesmo que perca, o ex-coach terá ganhado. Fundou jeito tóxico de fazer campanha, que corrói e expõe a fragilidade do envelhecido sistema eleitoral brasileiro e sua incapacidade para tourear as redes sociais e as fake news. Comícios, corpo a corpo e outras interações analógicas estão no museu cívico há alguns pleitos; agora, foi a vez dos debates na televisão. Marçal participou para, confessadamente, selecionar pequenos trechos (os cortes, na gíria do setor) e postá-los em suas redes. Não interessa o resto.

Assim, ofensas e mentiras contra os rivais estão liberadas – até porque, tudo que a organização dos programas prevê é o tal direito de resposta, sem qualquer importância. O atacado pode falar o que quiser, não fará diferença: Marçal garantiu seu corte e vai disseminá-lo pelos celulares do eleitorado. Missão cumprida.

Debates entre candidatos são programas com formato totalmente envelhecido. A sucessão pergunta-resposta-réplica-tréplica, sob neurótica cronometragem, é basicamente a mesma desde a redemocratização (os da eleição de 1989, com surreais 22 candidatos, estão no YouTube). No Brasil, não se realiza sequer a banalidade da checagem de mentiras e exageros em tempo real.

Tamanha vulnerabilidade era, há tempos, campo fértil para aventureiros, como prova a eleição paulistana. E, independentemente do resultado, o futuro se desenha sombrio. No momento em que você aí lê a coluna, vários pablos marcais estão traçando estratégias as mais bizarras para investir na votação daqui a dois anos – na qual os brasileiros elegeremos deputados estaduais e federais, governadores, dois senadores por estado e o presidente da República.

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Então, faz o quê, colunista-mala? Proíbe candidaturas de coachs e afins? Não, jamais. Se preenchem os requisitos legais para disputar, jogo jogado. A defesa, aqui, precisa ser dos valores democráticos. O que vale mais? Dar palco ao concorrente bizarro e, assim, garantir audiência via entretenimento rasteiro, ou dedicar o espaço ao real confronto de ideias, propostas, biografias etc? Mais objetivo ainda: cadeiradas ou debates republicanos – o que queremos?

(Terminou sufocado pela gritaria a discussão urgente sobre meio ambiente. A campanha ocorreu sob a fumaça inclemente das queimadas, mas os candidatos virtualmente ignoraram o tema. Mais uma tragédia.)

Os marçais florescem, também, pelos tempos lamentáveis que vivemos. Grassam o imediatismo e a precarização; multiplicam-se os escravizados contemporâneos que se enxergam empreendedores; a indústria da tecnologia esgarça relações e turbina a solidão que conduz à intolerância; o diálogo se esvanece; a esperança e a fraternidade se dissolvem; o egoísmo sufoca a generosidade. Tal cenário produz a vulnerabilidade para a narrativa-coach se alastrar.

O cuidado com a democracia precisa ser permanente – mas diante dos violentos eventos da campanha em São Paulo, acumula novas urgências. Muito além de pregar cadeiras, reais ou metafóricas, no chão dos estúdios.

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