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Duas meninas da favela e o racismo territorial na eleição

Ato de Lula no Complexo do Alemão oferece nova demonstração da importância do acesso à educação mas turbina racismo territorial que infesta o Brasil

ODS 10ODS 16 • Publicada em 13 de outubro de 2022 - 22:40 • Atualizada em 14 de outubro de 2022 - 11:13

Sem as favelas, o Rio de Janeiro seria um lugar incomparavelmente pior. Mais careta, desenxabido, sem boa parte das gírias, órfão de um considerável quinhão de seus traços de comportamento, amputado de praticamente toda a criatividade. E o pior: acabaria um pedaço do mundo menos plural, gravemente desbotado em suas cores. Porque vêm das favelas força, arte, potência, criatividade, coragem, empreendedorismo.

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Desde a ocupação do Morro da Favela (onde nasceu o nome), na região da atual Providência, no Centro, a cidade mantém relação cruel com a população das comunidades populares. Tenta reprimir sua circulação, despreza seus feitos, nega-lhe oportunidades e, na dúvida, “senta o dedo” e mata seus habitantes.

Mas as favelas resistem – e prosperam. “A cidade partida do livro do Zuenir Ventura só existe por um lado”, sustenta Raull Santiago, morador do Complexo do Alemão e midiativista, criador do Coletivo Papo Reto. “A favela todo dia circula pela cidade, é a primeira a descer para ligar os interruptores da sociedade, passando por ônibus lotados, horas de trânsito. E é a última a voltar para casa. A favela não experimenta ambientes de cultura, arte e lazer que ajuda a construir. Mas é o funcionamento da sociedade”.

As estudantes da UFRJ na janela: reconhecimento às políticas de inclusão no ensino superior dos governos petistas. Foto Joao Gabriel Alves/AGIF/AFP
As estudantes da UFRJ na janela: reconhecimento às políticas de inclusão no ensino superior dos governos petistas. Foto Joao Gabriel Alves/AGIF/AFP

Resumo cirúrgico do cotidiano de uma população que merece ser exaltada, por oferecer virtudes múltiplas. Favelas inventaram o melhor emblema da cidade, o Carnaval, criando grande parte das nossas escolas de samba – Mangueira, Salgueiro, Unidos da Tijuca, Vila Isabel, Mocidade, Imperatriz, para citar algumas; e presentearam o mundo com talentos monumentais – Cartola, Elza Soares, Ludmilla, Almir Guineto, Adriano Imperador, Paulo Lins, DJ Renan da Penha.

Mesmo assim, os moradores desses pedaços da terra carioca pagam pecados que não cometeram, no país barbaramente injusto. Por todas as mazelas, vivem até 29 anos menos, em média, do que habitantes das regiões do privilégio. Perdem inocentes numa batalha eterna, estúpida e infrutífera que faz balas voarem a esmo, produzindo mortes inaceitáveis. Sofrem sem saneamento, adoecem em precárias unidades de saúde, têm a educação prejudicada pela criminosa falta de cuidado.

Mas seguem, desfilando arte e alegria na cidade que devolve intolerância, desprezo e violência. No polarizado segundo turno da campanha eleitoral, a relação desequilibrada viveu dia ao mesmo tempo reconfortante e desalentador. Líder das pesquisas, Luiz Inácio Lula da Silva visitou o Conjunto de Favelas do Alemão na manhã da quarta-feira Dia das Crianças produzindo cenas apoteóticas do amor de um povo pelo líder que está de volta.

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O candidato empunhou a bandeira da Imperatriz, distribuiu beijos e carinho à população em êxtase. Mas a cena mais significativa ocorreu na janela de um apartamento no segundo andar de um prédio simples, dos poucos daquelas bandas. Duas moças negras Priscilla e Gabriella Borges, ocuparam as janelas exibindo orgulhosas, como bandeiras, camisas dos cursos de Odontologia e Engenharia da UFRJ. Uma dupla favelada, do estrato populacional que mais sofre com a desigualdade, ostentou o orgulho por estudar na maior instituição federal de ensino superior do país.

Afora exceções estatisticamente invisíveis, brasileiros como elas conseguiram acesso à universidade pelas políticas de inclusão implementadas nos governos do PT de Lula. Até ali, o país que se permitiu quase quatro séculos de escravidão jamais se preocupara em cuidar dos negros – ao contrário, negou-lhe oportunidades e multiplicou preconceito e intolerância contra eles.

As duas moças não desceram para a passeata, nem embarcaram no canto dos jingles, tampouco gritaram os bordões eleitorais. Exibiram, com sorrisos agradecidos, as camisetas que apontam para a mudança decisiva. Como milhões de negros e outros excluídos, decifraram que não há caminho fora da educação – e quando encontram a oportunidade, agarram com todas as forças, colecionam notas altas e desempenho admirável, fulminando preconceitos.

Mas os obtusos resistem e usaram a visita de Lula para destilar suas barbaridades. Durante toda a jornada, o petista usou um boné preto, dado pela ativista Camila Moradia (conhece? Devia), com a inscrição CPX – de ComPleXo do Alemão, sigla usada até pela polícia e pelos órgãos da prefeitura. Na torrente de mentiras disseminadas na campanha, brotou a narrativa de que as letras seriam de uma facção criminosa. Do prefeito Eduardo Paes à mídia tradicional, de ativistas como Renê Silva a políticos variados, os desmentidos foram numerosos.

Mas a intolerância resiste, muito além da disputa eleitoral. Entre as milhares de fotos com fãs, o candidato posou com o ator e modelo Diego Raymond, da minissérie “A divisão”, com estreia prevista para 2023 no streaming Globoplay. “Meu voto é Lula contra essa gente desprezível, contra quem criminaliza a pobreza, para que a gente possa andar de cabeça erguida na rua sabendo que o pobre e o preto são tratados como iguais e que as histórias das crianças das favelas do RJ vão ser diferentes”, respondeu o artista, no Instagram.

A luta contra a mentirada política é só o mais novo desafio no caminho do povo favelado, vítima, desde sempre, do racismo territorial. Discriminação que tenta ocultar os muitos meliantes engravatados, moradores dos bairros ricos, os tais “cidadãos de bem”, defensores de exilar os “bárbaros” na periferia. A criminalização da pobreza está entre os cacoetes mais renitentes do lixo humano chamado elite brasileira. (Para temperar a prosa com arte, “Caravanas”, de Chico Buarque.)

O desfecho do dia 30 não vai debelar as mazelas. Bolsonaristas, repulsivos agentes do horror, seguirão à solta – e o povo das favelas manterá suas lutas graças à coragem que carrega no DNA. Com ela, o CPX e todas as periferias vencerão.

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