Número de invasões de terras indígenas duplica com Bolsonaro

O líder indígena Kretan Kaingang participa de um protesto contra o presidente Jair Bolsonaro, em frente ao Congresso Nacional. Foto Evaristo Sá/AFP

Relatório do Cimi conclui que, por omissão, governo brasileiro promove uma das maiores tragédias ambientais do mundo

Por Liana Melo | ODS 15ODS 16 • Publicada em 30 de setembro de 2020 - 15:29 • Atualizada em 25 de julho de 2023 - 11:24

O líder indígena Kretan Kaingang participa de um protesto contra o presidente Jair Bolsonaro, em frente ao Congresso Nacional. Foto Evaristo Sá/AFP

As ameaças começaram ainda durante a campanha eleitoral do então candidato à presidência pelo PSL. Eleito, o presidente Jair Bolsonaro transformou a vida dos indígenas num verdadeiro inferno no seu primeiro ano de governo. Em 2019, houve aumento de casos de violência em 16 das 19 categorias listadas pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi) no seu relatório “Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil/ 2019”, lançado na última quarta, dia 30 de setembro.

Chama especial atenção a intensificação de registros de invasão de terras indígenas por posseiros, exploração ilegal de recursos naturais e danos ao patrimônio. Os casos mais do que duplicaram no governo Bolsonaro, pulando de 109, em 2018, para 256 casos, no ano passado. Um total de 151 terras indígenas foi alvo de invasões, atingindo a vida de 143 povos indígenas, que vivem espalhados por 23 estados brasileiros. Do total de casos listados no relatório do Cimi, 107 deles provocaram danos ao meio ambiente.

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Aqui se incentivou uma das maiores tragédias ambientais do mundo, através de incêndios criminosos, desmatamentos, loteamentos de terras indígenas, invasões de toda ordem, ameaças, espancamentos e assassinatos de líderes indígenas, quilombolas e de comunidades de pequenos agricultores, que defendiam seus territórios

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“Aqui se incentivou uma das maiores tragédias ambientais do mundo, através de incêndios criminosos, desmatamentos, loteamentos de terras indígenas, invasões de toda ordem, ameaças, espancamentos e assassinatos de líderes indígenas, quilombolas e de comunidades de pequenos agricultores, que defendiam seus territórios”, criticou Dom Roque Paloschi, presidente do Cimi e arcebispo de Porto Velho, ao analisar a atuação do governo Bolsonaro durante o lançamento do relatório. É a primeira vez que o Cimi divulga o documento virtualmente.

É de fato uma tragédia sem precedentes. As invasões promovidas nas terras indígenas durante o primeiro ano do governo Bolsonaro tiveram motivações diversas. De exploração ilegal de madeira a garimpo, passando por grilagem, pesca predatória, tráfico de drogas, contaminação por agrotóxico e ocupação ilegal para expansão do agronegócio.

À frente de um governo marcado pela omissão e pelo desmonte da estrutura de proteção dos povos indígenas, o presidente Bolsonaro e ministros  engavetaram 829 processos de pedidos de demarcação de terras indígenas em 2019. A base de dados do relatório incluiu informações enviadas por missionários, pelos povos indígenas e suas entidades, pelo Ministério Público Federal (MPF) de diferentes estados e notícias publicadas pela imprensa.

[g1_quote author_name=”Lúcia Helena Rangel” author_description=”Organizadora do relatório do CIMI” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]

Os dados de 2019 demonstram o aumento significativo das omissões do governo federal em relação às suas obrigações constitucionais no que tange aos povos indígenas. Tais omissões contam com a complacência do mais alto dirigente do país, Jair Bolsonaro

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“Os dados de 2019 demonstram o aumento significativo das omissões do governo federal em relação às suas obrigações constitucionais no que tange aos povos indígenas. Tais omissões contam com a complacência do mais alto dirigente do país, Jair Bolsonaro”, analisou a antropóloga Lúcia Helena Rangel. Professora da PUC-São Paulo, ela organizou o relatório em parceria com Roberto Antonio Liebgott, coordenador do Cimi Regional Sul.

Paulo Paulino Guajajara: líder indígena baleado na floresta durante emboscada. Foto de Patrick Raynaud (APIB/Amazônia Real)
Paulo Paulino Guajajara: líder indígena baleado na floresta durante emboscada. Foto de Patrick Raynaud (APIB/Amazônia Real)

Invariavelmente, as violências praticadas contra os indígenas e suas comunidades estão associadas à disputa pela terra. Ainda que o número de assassinatos tenha diminuído em 2019, as lideranças indígenas foram o principal alvo. A emboscada contra Paulo Paulino Guajajara, assassinado no final de 2019, é apenas um dos exemplos. Morreram naquele ano 113 indígenas contra 135, em 2018. Os dois estados com o maior número de assassinatos foram o Mato Grosso do Sul, com 40 mortes, e Roraima, com 26 assassinatos. Em compensação, aumentaram as tentativas de assassinatos, que subiram de 22, em 2018, para 25, no ano passado. Assim como as ameaças de morte, que pularam de oito, em 2018, para 33, em 2019.

O Cimi denunciou em seu relatório os casos em que houve omissão do poder público, um total de 267 casos. Frente à dificuldade de levantar alguns dados, especialmente aqueles oriundos da Secretaria Especia de Saúde Indígena (Sesai), os autores do relatório apelaram a Lei de Acesso à Informação (LAI). Ainda assim, muitos dados foram encaminhados de forma parcial, sobretudo aqueles referentes a suicídio e mortalidade na infância.

Foram registrados 133 suicídios em todo o país em 2019; 32 a mais que em 2018. Os estados do Amazonas (59) e Mato Grosso do Sul (34) encabeçaram a lista. Também houve aumento nos registros de “mortalidade na infância” (crianças de 0 a 5 anos), que saltaram de 591, em 2018, para 825 em 2019. Chamam atenção os registros de 248 casos no Amazonas, 133 em Roraima e 100 no Mato Grosso. Assim como os assassinatos, o relatório chama a atenção para o fato de que as informações da Sesai sobre os registros relativos a suicídio e mortalidade na infância são parciais e estão sujeitos a atualizações. Ou seja, os dados podem vir a ser ainda mais graves.

Há 27 anos, quando ocorreu o “Massacre de Haximu”, em Roraima, quando 19 Yanomamis foram assassinados por garimpeiros que invadiram a terra indígena atrás de ouro, o Cimi e setores sociais simpáticos à causa indígena se perguntaram: “Até quando matarão indígenas para explorar suas terras?”, “Até quando matarão crianças, adultos e idosos indígenas para derrubas as florestas?”.

A pergunta continua atual e, o pior, sem resposta. Alvo de agressões, intolerância, racismo, omissão e negligência estatal, a atual política indígena do governo Bolsonaro tem apoio entre políticos e empresários. E, como lembra o presidente do Cimi referindo-se a matança dos Yanomamis, em 1993, “por trás daquela invasão havia políticos, e alguns deles continua a exercer atividades parlamentares no país ou exercem influência, até hoje, dentro das instituições públicas”. A pergunta que não quer calar: até quando?

Liana Melo

Formada em Jornalismo pela Escola de Comunicação da UFRJ. Especializada em Economia e Meio Ambiente, trabalhou nos jornais “Folha de S.Paulo”, “O Globo”, “Jornal do Brasil”, “O Dia” e na revista “IstoÉ”. Ganhou o 5º Prêmio Imprensa Embratel com a série de reportagens “Máfia dos fiscais”, publicada pela “IstoÉ”. Tem MBA em Responsabilidade Social e Terceiro Setor pela Faculdade de Economia da UFRJ. Foi editora do “Blog Verde”, sobre notícias ambientais no jornal “O Globo”, e da revista “Amanhã”, no mesmo jornal – uma publicação semanal sobre sustentabilidade. Atualmente é repórter e editora do Projeto #Colabora.

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