Decisão do STF reacende esperança por justiça pela tragédia da boate Kiss

Familiares e sobreviventes celebram medida do ministro Dias Toffoli que pode levar à validação de julgamento condenando réus

Por Micael Olegário | ODS 16 • Publicada em 26 de fevereiro de 2024 - 09:09 • Atualizada em 6 de março de 2024 - 08:16

Sobreviventes e parentes de vítimas de incêndio na boate Kiss em vigília: suspensão de novo júri pelo STF reacende esperança por justiça e condenação definitiva dos réus (Foto: Dartanhan Baldez – 27/01/2024)

Nas vésperas da realização do novo julgamento dos réus indiciados pela tragédia da Boate Kiss, marcada para o dia 26 de fevereiro em Porto Alegre, o ministro do Superior Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, atendeu pedido do Ministério Público do Rio Grande do Sul e suspendeu o novo júri. A decisão foi motivada pelo fato de ainda existirem recursos a serem sobre o primeiro julgamento, realizado em 2021 e anulado pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS). 

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A suspensão foi celebrada pela  Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM), principalmente por evitar um novo sofrimento para quem carrega uma ferida que jamais cicatrizou. O incêndio na boate, que estava superlotada e não possuía sinalização de emergência nas saídas, matou 242 pessoas e deixou mais de 600 feridas. Nos 11 anos desde que o desastre-crime ocorreu, em 27 de janeiro de 2013, o caso coleciona várias idas e vindas.

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Em 2017, uma decisão do TJRS tinha desconsiderado a possibilidade de dolo (intenção) dos réus na tragédia, o que tiraria a necessidade do caso ir ao Tribunal do Júri, que é reservado para crimes graves. O Ministério Público recorreu e a decisão foi revertida, com o julgamento dos seis acusados por dolo eventual (quando se assume o risco de matar).

São manobras indecentes, isso é tudo preparado para postergar o máximo possível até tentar chegar na prescrição. Como não chegaram, fazem o processo de anulação

Paulo Carvalho
Matemático aposentado e pai de Rafael, morto no incêndio da Kiss

Com isso, Elissandro Spohr e Mauro Hoffmann, sócios da Kiss, Luciano Bonilha e Marcelo de Jesus, integrantes da banda Gurizada Fandangueira, foram julgados em 2021. Depois do julgamento mais longo da história do Poder Judiciário gaúcho, com duração de dez dias, os réus foram condenados a penas que variam entre 18 a 22 anos e meio de prisão. Mesmo assim, eles não nunca chegaram a ser presos em razão de um Habeas Corpus preventivo concedido pela 1ª Câmara Criminal do TJRS.

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A anulação da condenação foi motivada por detalhes não seguidos nos protocolos do Tribunal do Júri, como um encontro entre o magistrado e os jurados sem a presença de representantes da defesa e acusação, o que não é permitido. No entanto, o Ministério Público e a AVTSM alegam que esses detalhes não tiveram efeito para o resultado final do júri. Segundo o advogado da Associação, Pedro Barcellos Jr, se o novo júri fosse realizado, isso poderia causar uma confusão no processo, por exemplo, caso os réus fossem condenados a uma pena maior e decidissem recorrer novamente.

O sofrimento psicológico de reviver todo o contexto da tragédia é um dos pontos mencionados pelo advogado. A frustração com a anulação da primeira condenação e o fato dos acusados seguirem em liberdade, reforça o sentimento de injustiça de quem perdeu familiares no episódio. “Acham que nós não devemos fazer mais nada, que nós temos que esquecer e deixar nossos filhos descansarem, mas como deixar nossos filhos podem descansar enquanto não há justiça?”, questiona a vice-presidente da AVTSM, Marilene Santos, 55 anos, mãe de Nathiele dos Santos Soares, uma das vítimas do incêndio da boate Kiss, então com 21 anos de idade.

A visão é compartilhada com outros membros da Associação. Médica veterinária e uma das sobreviventes do incêndio, Anna Zimmermann, 32 anos, resume o sentimento de decepção com a anulação e com a falta de um desfecho para o caso. “A gente fica bastante triste, porque uma tragédia desse tamanho não ter nenhuma finalização, nenhuma condenação. Eles não precisariam ficar, na minha opinião, presos por 14, 15 anos. Mas eu acho que pelo menos eles deveriam ser culpados”, complementa.

Mesmo com a tragédia da boate, muitas pessoas ainda entendem a segurança contra incêndio como um gasto desnecessário

Ângela Graeff
Professora do Departamento de Engenharia Civil da UFRGS

Na visão do agricultor Darci Andreatta, 58 anos, pai do estudante de Tecnologia de Alimentos Ariel Nunes Andreatta, morto na boate na época aos 18 anos, a espera por um desfecho alimenta a percepção de morosidade e impunidade. “Eles sabiam que corria um risco de cometer um ato como aconteceu. Tragédia não foi, porque para mim tragédia é um temporal, um raio, algo assim. Como aconteceu ali pela mão do homem, sem falar em ganâncias e em questão financeira, isso não foi tragédia”, afirma o agricultor, que mora em Jóia, no interior do Rio Grande do Sul. Muitas vítimas eram estudantes da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) vindos de diversas partes do estado.

Matemático aposentando em São Paulo, Paulo Carvalho, 72 anos, também perdeu o filho, Rafael Carvalho, 32, no incêndio da boate. Ele manifesta a incompreensão com a forma como o processo está sendo tratado e, principalmente a demora, o que, segundo ele, favorece que outros desastres continuem ocorrendo. “São manobras indecentes, isso é tudo preparado para postergar o máximo possível até tentar chegar na prescrição. Como não chegaram, fazem o processo de anulação”, ressalta Paulo ao lembrar que outras tragédias semelhantes no Brasil, como o caso de Brumadinho, possuem um roteiro jurídico de impunidade semelhante.

Pedro Barcellos lembra que a Kiss havia recebido uma notificação de adequação pela poluição sonora. Além disso, sobreviventes relataram que faltavam extintores e que outros não funcionaram, pois haviam sido descarregados dias antes em uma festa. O material que revestia o local também era altamente inflamável. Todo esse contexto, combinado com a atitude de muitos seguranças, que barraram a saída das pessoas, potencializou a tragédia-crime. “Não há mais necessidade. A gente já viu as provas, a gente já ouviu os depoimentos e isso vai ficar na contramão do julgamento, porque todo mundo sabe o que todo mundo vai falar”, afirma o advogado sobre a possibilidade de um novo júri.

Manifestação em memória das vítimas do incêndio na Kiss com nomes e sapatos: familiares protestam contra morosidade e impunidade (Foto: Dartanhan Baldez - 27/01/2024)
Manifestação em memória das vítimas do incêndio na Kiss com nomes e sapatos: familiares protestam contra morosidade e impunidade (Foto: Dartanhan Baldez – 27/01/24)

Os reflexos da tragédia e a Lei Kiss

A Kiss tinha capacidade para 691 pessoas, mas de acordo com a Polícia Militar, entre 1.000 e 1.500 pessoas assistiam ao show da banda Gurizada Fandangueira, quando um dos integrantes acendeu um artefato pirotécnico que deu início ao fogo. A dimensão do desastre e a comoção gerada na sociedade levou a uma série de manifestações e cobranças por medidas mais duras de prevenção de incêndios, principalmente em ambientes fechados.

Professora do departamento de Engenharia Civil da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Ângela Graeff atribui a criação da Lei nº 13.425/2017, chamada de Lei Kiss, a uma tentativa de resposta dos entes públicos e uma mudança de paradigma nos Planos de Prevenção Contra Incêndio (PPCI). “A legislação é toda cheia de detalhes quando a gente toca em casas noturnas e nos materiais que a gente vai colocar nessas edificações, justamente por causa da boate”, explica a especialista.

Ao longo dos anos, algumas mudanças e simplificações foram feitas na legislação, principalmente com foco em edificações de baixo risco. “Hoje, essas edificações consideradas de baixo risco, elas não precisam de nenhum protocolo no Corpo de Bombeiros, mas elas não estão isentas de terem medidas básicas”, complementa Ângela, que também coordena um curso de especialização em Engenharia de Segurança na UFRGS.

A gente acredita que daqui a alguns anos a sociedade talvez evolua para uma forma que a cultura de segurança se torne algo do cotidiano, que as pessoas olhem para as situações e consigam entender o perigo que elas correm ali, e não aceitar e cobrar essa fiscalização

Francelyne Rosa
Técnica em Segurança do Trabalho

Um dos pontos destacados pela professora e pesquisadora é a barreira cultural que trava a implementação de medidas de prevenção. “Mesmo com a tragédia da boate, muitas pessoas ainda entendem a segurança contra incêndio como um gasto desnecessário”, comenta Ângela. Segundo ela, ações de conscientização, inclusive para não deixar o episódio da Kiss cair no esquecimento, são importantes para superar essa barreira e ampliar o entendimento da segurança contra incêndio como um investimento.

Técnica em Segurança do Trabalho, Francelyne Rosa mora em Guaratinguetá (SP). Mesmo distante geograficamente da tragédia, ela pesquisou sobre o impacto do caso e como poderia afetar a sua realidade local e regional onde vive. “A gente quis trazer essa conscientização de que aconteceu algo semelhante a uns anos atrás, e que até hoje a cultura de segurança não tinha sido implementada”, destaca ela, ao lembrar que muito pouco mudou no modo como as pessoas pensam na segurança de locais com grande público.

Assim como a especialista da UFRGS, Francelyne aponta a dificuldade em conscientizar as pessoas, empresas e o órgão públicos sobre a necessidade de prevenção. “A gente acredita que daqui a alguns anos a sociedade talvez evolua para uma forma que a cultura de segurança se torne algo do cotidiano, que as pessoas olhem para as situações e consigam entender o perigo que elas correm ali, e não aceitar e cobrar essa fiscalização”, salienta Francelyne.

 

Micael Olegário

Jornalista formado pela Universidade Federal do Pampa (Unipampa). Gaúcho de Caibaté, no interior do Rio Grande do Sul. Mestrando em Comunicação na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Escreve sobre temas ligados a questões socioambientais, educação e acessibilidade.

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