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Celsinho da Vila Vintém no país que não se ocupa do sistema prisional

Com a terceira população carcerária da Terra, Brasil trata cadeias como depósitos de gente, turbinando problemas cada vez mais graves para toda a sociedade

ODS 16 • Publicada em 23 de fevereiro de 2024 - 01:36 • Atualizada em 18 de março de 2024 - 18:32

Na festa pelo título da Unidos de Padre Miguel, escola de samba da Zona Oeste carioca campeã da Série Ouro (segunda divisão da batucada), uma cena ligeira correu o mundo das redes sociais, emoldurando comentários histéricos. Dura poucos segundos e exibe um senhor careca, sem camisa e com imenso cordão de ouro no pescoço, em breve e sorridente caminhada, pelo meio da multidão eufórica.

Ele é o carioca Celso Luiz Rodrigues, o Celsinho da Vila Vintém.

Leu essa? A doença do encarceramento

Totem do tráfico de drogas no Rio de Janeiro, criador e comandante de facções criminosas, atravessou um quarto de século na cadeia (entre fugas e tentativas), até ser libertado em outubro de 2022. Após materializar a raridade de cumprir sua pena, é, aos 63 anos, cidadão quites com a lei. No tempo fora da cana, exilou-se na Vila Vintém que compõe seu apelido de guerra. Lá, mantém a alegada atividade profissional: criador de porcos.

Celsinho com a camisa de seu novo empreendimento: carnes suínas. Reprodução do Instagram
Celsinho com a camisa de seu novo empreendimento: carnes suínas. Reprodução do Instagram

Permite-se poucas saídas do seu território, por dificuldades de locomoção, devido a um problema de saúde nas pernas, e, sobretudo, para evitar indesejados encontros com milicianos ou agentes do Estado em empreendimentos heterodoxos. Num dos passeios bissextos, foi até a beira da Vila Vintém, em meados do ano passado, acompanhar a leitura do enredo da Mocidade Independente, escola que divide o bairro com a campeã da Série Ouro.

Celsinho é patrono (misto de dono e patrocinador) da UPM, apelido da novata no Grupo Especial em 2025. Sua mulher, Daisi, comanda o grêmio e a neta, Lara Mara, ocupa com estilo marcante, por apaixonado, a diretoria de Carnaval.

Vitaminada por recursos da família, a escola realizou desfile luxuoso – primeiro lugar com justiça – e, como está na letra do samba-enredo, “os anjos disseram amém” ao título que escapou diversas vezes. Para arrematar a metáfora, o enredo, sob o título “O redentor do sertão”, foi sobre Padre Cícero.

O Brasil observa a liberdade do empresário de carne suína (logo, do agronegócio) como se vislumbrasse a encarnação do demônio. Não aceita a constatação de ele estar na rua porque pagou o que devia. “Ah, mas ele continua traficante”, especulam, convictos como beatos. Será sempre possível – mas, como qualquer outro vivente sob a lei brasileira, Celsinho tem direito à presunção de inocência. Assim, para aferir novos crimes, serão necessários investigação, processo, julgamento, sentença, recursos diversos etc etc.

Assim ensina o estado de direito, tão maltratado no Brasil. A sociedade se surpreende porque não se ocupa do grande alimentador dos crimes, o sistema prisional. Aqui, se entende as cadeias como depósitos de gente que não presta, merecedora de ficar lá para sempre.

Como tal possibilidade inexiste, sem ressocialização, nada faz sentido. A aposta – barbaramente popular – do encarceramento leva a lugar nenhum. Além de não resolver, agrava os problemas mais óbvios, por servir como poderoso alimentador da violência “aqui fora”. E só piora com o fato de que o Brasil tem a terceira mais numerosa população carcerária do planeta – perto de 850 mil bípedes –, atrás apenas do empate técnico de Estados Unidos (1,7 milhão) e China (1,69 milhão).

Previsivelmente, não cabe todo mundo nas celas disponíveis, excesso que supera 180 mil pessoas – mais de três vezes o total de presos na Alemanha (56 mil). Mas o Brasil, independente da orientação ideológica do governo, insiste no encarceramento. Constrói novas cadeias porque prende mais, numa ciranda que se repete à eternidade. No bojo, atravanca a Justiça, abandonando os detentos à sua própria sorte.

Agora, em nova aposta obtusa, o conservador Congresso aprovou o fim da “saidinha” dos presos, nome infeliz para o benefício que permite deixar a cadeia temporariamente em sete datas anuais, como Natal e dias das mães e dos pais. O aumento de apenados que aproveitam para fugir incentivou os doutores – sempre ávidos pela carona no discurso da brutalidade – a aprovar projeto de lei para extinguir o benefício. Especialistas no setor se posicionaram contra a proposta, que deve ser vetada por Lula. Os parlamentares poderão derrubar o não presidencial.

E assim, jaz o urgente debate sobre o problema. O abandono e multiplicação dos encarcerados funcionam como combustível para tragédias cotidianas”. O Estado se mostra totalmente impotente para controlar o sistema – e ninguém dá a mínima. Como se passar a tranca às costas do sentenciado representasse o fim do problema. Está mais para início.

A partir de capítulo sangrento do eterno descaso – o Massacre do Carandiru, dos 111 mortos no presídio paulistano, em outubro de 1992 –, os sobreviventes entenderam que seria necessário algum tipo de proteção. Nascia o PCC, hoje uma multinacional do crime, com ramificações por todo o país, além do controle de regiões inteiras da maior cidade do continente. O Comando Vermelho, maior facção do Rio, também surgiu em prisões.

(Quem, quiser entender o buraco em que estamos metidos precisa assistir a “PCC – Poder Secreto”, monumental documentário de Joel Zito Araújo, disponível na HBO Max.)

Para completar o cenário terrível, a inédita fuga de dois detentos da Penitenciária Federal de Mossoró (RN) dissolveu a ilusão da cadeia inexpugnável. Uma coleção de irregularidades e omissões surgiu no bojo do episódio, como mais recente lição de que o caminho do encarceramento não leva a lugar algum.

Apesar dos inúmeros alertas da realidade, o Brasil segue aferrado à cegueira voluntária. Prefere a expressão de horror, diante de histórias como a de Celsinho ou as frequentes e das explosivas rebeliões que se multiplicam em unidades país afora.

Porque perpétuas, por aqui, são as escolhas equivocadas.

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