“Prazer, sou Caê.” Assim começa o texto do jornalista Caetano Vasconcelos publicado pela Ponte Jornalismo em maio de 2020. Em tom pessoal e introspectivo, Caê, como é carinhosamente conhecido, apresentava ali a sua nova identidade publicamente, compartilhando ao decorrer da leitura, todo o processo da sua autodescoberta como um homem trans. Para os leitores, aquela era a primeira interação com Caetano, mas para ele, aquele texto era apenas uma página de um processo longo e complexo de transição, iniciado em 2017. “Foram dois anos tentando entender o que eu realmente estava sentindo, o que realmente eu era”, relatou o jovem nascido e criado na Vila Nova Cachoeirinha, periferia da zona norte de São Paulo, hoje com 32 anos.
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A transição de uma pessoa transmasculina envolve diversos processos. Além de precisar entender os impactos dessas escolhas em sua vida, ainda há muitas questões em relação à transição, como a mastectomia, a hormonioterapia e outros diversos exames necessários para manter a saúde em dia. Ademais, era necessário assimilar esses impactos na saúde mental, juntamente com assuntos relacionados à masculinidades, machismos e o patriarcado. “Existem muitas referências ruins de masculinidade na sociedade. Eu tinha essa visão negativa e me perguntava: será que eu quero me encaixar?”, questionava.
Durante a pandemia de Covid-19, além de enfrentar o isolamento social, Caê teve que lidar com várias questões médicas relativamente à sua transição de gênero. Embora sempre tivesse certeza de sua identidade como homem trans, ele sentia medo em respeito aos aspectos sociais dessa transição, como a inserção no mercado de trabalho e as relações afetivas. “A transgeneridade sempre esteve em mim, eu só não sabia da existência”, afirma.
A transgeneridade sempre esteve em mim, eu só não sabia da existência.
O documentário ‘Bixa Travesty’, que conta a história da cantora Linn da Quebrada, foi um ponto importante para Caê em termos de aceitação. Segundo o jornalista, a cisgeneridade impõe a ideia de que as pessoas trans devem odiar seu corpo, mas para ele, não foi assim: “Eu não tinha essa repulsa pelo meu corpo, o que me fez pensar ‘talvez eu não seja uma pessoa trans’ porque se dizem que uma pessoa trans tem que odiar o próprio corpo, então eu não sou.” No documentário, a cantora e outras mulheres trans expressam dúvidas semelhantes em relação ao uso de hormônios, cirurgias e outros aspectos. “Na hora que vi aquela cena, eu pensei: ‘Existem um milhão de formas de ser uma pessoa trans’, então eu vi que não há uma regra a seguir.”
Transição e saúde pública
Desde 2020, muita coisa mudou para Caê. A partir de sua pesquisa de Trabalho de Conclusão de Curso sobre a população trans no mercado de trabalho, que posteriormente se transformou no livro ‘Transresistência: pessoas trans no mercado de trabalho’, ele passou a ser uma referência em informações sobre o processo de transição de gênero para e por pessoas trans. Caê vive diariamente as resistências que é ser um homem trans no Brasil, o país que mais mata pessoas trans pelo 15º ano consecutivo. São direitos minados em retrocessos no legislativo somados à hostilidade em diversas áreas, como na saúde pública com transfobias médicas. “Tem que ter um acolhimento maior, isso é, entender que o gênero aqui não é a genitália, é como a pessoa se identifica, o que para alguns médicos isso já aparece uma coisa absurda, há muita resistência”. Caê completa: “É revolucionário ser tratado como gente numa sala médica”.
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Pessoas trans passam frequentemente por uma série de procedimentos médicos para alinhar seu corpo com sua identidade de gênero. A terapia hormonal, como o uso de testosterona, é comum para desenvolver características masculinas: pelos faciais e mudanças na distribuição de gordura, por exemplo. Cirurgias como mastectomia (remoção de tecido mamário) e histerectomia (remoção do útero) são frequentemente buscadas para reduzir disforia de gênero e alinhar o corpo com a identidade masculina.
Além disso, cuidados psicológicos e de saúde complementares, como monitoramento médico regular e apoio emocional, são essenciais durante o processo de transição. A decisão sobre quais procedimentos seguir é individual e deve ser feita em consulta com profissionais de saúde qualificados, garantindo um cuidado adequado e inclusivo para cada pessoa transmasculina.
Em 2006, o SUS implementou, através da Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde, o direito ao uso do nome social, permitindo que pessoas transexuais e travestis sejam identificadas e chamadas socialmente pelo nome de sua escolha – não apenas nos serviços especializados que já os atendiam, mas em qualquer unidade da rede pública de saúde. Em 2008, foi instituído o Processo Transexualizador, que passou a oferecer acesso a procedimentos como hormonização, cirurgias de modificação corporal e genital, além de acompanhamento multiprofissional. Este programa foi redefinido e ampliado pela Portaria 2803/2013, passando a incluir homens trans e travestis como usuários do Processo Transexualizador do SUS, uma vez que até então apenas mulheres trans eram atendidas pelo serviço.
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Veja o que já enviamosVítima de transfobia médica
Apesar dos avanços em direitos, em março de 2021, Caê foi vítima de transfobia e teve o atendimento negado ao buscar uma consulta com uma endocrinologista para obter uma receita de testosterona, após seu médico de confiança não conseguir atendê-lo. “Na hora que sentei na cadeira para ser atendido, ela me perguntou: ‘Você é uma pessoa trans, né?’. Quando respondi que sim, ela disse: ‘Não ofereço esse tipo de tratamento’.” O caso, registrado também pela Ponte Jornalismo em reportagem, ocorreu na Acor Clínica Médica, localizada na República, região central de São Paulo. A médica também perguntou se ele estava fazendo tratamento psicológico e se já havia realizado a cirurgia de mastectomia. “Me senti perdido, sem saber como reagir, enquanto via uma médica se recusar a me atender e desrespeitar a privacidade do meu corpo, como se o corpo trans fosse público e todos tivessem o direito de questionar sobre ele”, relatou Caê em entrevista para a Ponte.
Tem que ter um acolhimento maior, isso é, entender que o gênero aqui não é a genitália, é como a pessoa se identifica, o que para alguns médicos isso já aparece uma coisa absurda, há muita resistência”.
Entendendo o que tinha passado como uma vítima de transfobia médica, Caê solicitou ajuda jurídica e fez uma denúncia ao Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp). Além disso, registrou um boletim de ocorrência na Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi), vinculada ao Departamento Estadual de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP). O caso também teve nota de apoio da FENAJ e do Sindicato dos Jornalistas.
Pensando em situações como essa, a Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) organizou um guia de como acessar o SUS para questões de transição: “constantemente somos procuradas sobre dúvidas em relação ao acesso ao processo transexualizador do SUS e sobre quais procedimentos temos garantido o direito, além do funcionamento e fluxo de atendimento”, afirma a instituição no próprio guia, que busca assegurar que a Política Nacional de Saúde Integral LGBTI do Ministério da Saúde seja cumprida de forma organizada. O guia pode ser encontrado aqui.
Centro de referência e acolhimento
Além disso, a comunidade tem acesso a alguns equipamentos públicos voltados aos cuidados de sua saúde, como o Centro de Referência para a População de Travestis e Transexuais (CR POP). Após certo tempo pagando os exames para continuar o uso da testosterona, Caê descobriu, por meio de um convite via e-mail, o centro de referência. “Eles estavam querendo alguém para poder ser esse elo com as pessoas trans, para explicar que existe esse serviço e que estava com vagas”, afirma. O vídeo com a divulgação pode ser encontrado em seu Instagram.
O CR POP de São Paulo, inaugurado em janeiro de 2023, é uma unidade pública dedicada ao atendimento e apoio específico para travestis e transexuais. Leva o nome de Janaína Lima, uma homenagem à travesti e ativista falecida em 2021, que se tornou um símbolo de luta para a comunidade. Segundo a Secretaria Municipal de Saúde, este modelo de rede de atenção à população trans é inédito no país.
É revolucionário ser tratado como gente numa sala médica.
Esse centro oferece uma gama de serviços essenciais, incluindo assistência social, apoio psicológico, encaminhamento para serviços de saúde, acesso a programas de educação e capacitação profissional, além de orientações sobre direitos e cidadania. “Na época eles estavam com atendimento ginecológico, psicólogo, psiquiatra, nutricionista e fonoaudiólogo, o que para mim já era ótimo. Eu não tinha passado na ginecologista desde então por medo de sofrer transfobia”, afirma Caê.
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Quando Caê conversou com a coordenadora do centro, sentiu-se acolhido e começou seu tratamento. “Eu chorava enquanto ela falava, por conta do acolhimento. Eu disse: ‘Meu Deus, eu nunca imaginei ouvir uma coordenadora de um espaço de saúde falando assim’. Em nenhum momento errou meu pronome e em nenhum momento falou ‘ginecologia para mulheres’, sempre diziam ‘para pessoas’”.
O Centro de Referência de Saúde Integral para a População de Travestis e Transexuais – Janaína Lima (CR POP TT) está localizado na Rua Jaraguá, 866 – Bom Retiro, São Paulo. O centro funciona de segunda a sexta-feira, das 9h às 21h.