(Leila Salim*) – Os processos de autorização de desmatamento conduzidos por estados e municípios no Cerrado, segundo maior bioma do país, estão fora de controle. Estudos de especialistas e relatos de fiscais no campo mostram que as autorizações têm sido emitidas a toque de caixa, em volume e velocidades que impossibilitam o monitoramento pelos órgãos ambientais, sem transparência nem controle social.
Em alguns estados, como a Bahia, o processo de “tercerização” que transfere aos municípios a prerrogativa de autorizar o desmatamento tem ocorrido sem registro nos sistemas públicos, como o Sistema Nacional de Controle da Origem dos Produtos Florestais (Sinaflor), gerando um apagão de informações e dificultando as ações de comando e controle. Além disso, a validade inaudita das autorizações de supressão de vegetação (que pode ser de até quatro anos) tem sido utilizada como meio de especulação, com proprietários fazendo “poupança” de permissões de desmate para utilização em momentos economicamente mais propícios.
Leu essa? Desmatamento no Cerrado sobe 25% no último ano de Bolsonaro
O resultado é que, enquanto as ações do governo ao longo deste ano conseguiram produzir uma inflexão de 7% na área de alertas de desmatamento na Amazônia no ano de 2023, o Cerrado segue sem controle.
Considerado a “caixa d’água do Brasil”, o Cerrado – cujo Dia Nacional se comemora nesta segunda-feira (11/9) – concentra nascentes e áreas de recarga hídrica fundamentais para a irrigação de bacias hidrográficas da América do Sul. Entre os chamados “serviços ecossistêmicos” prestados pelo bioma, está a provisão de água que é base para a operação das principais hidrelétricas do país.
Gostando do conteúdo? Nossas notícias também podem chegar no seu e-mail.
Veja o que já enviamos“Os biomas são integrados: há um fluxo de águas, um fluxo atmosférico de umidade, de carbono, de biodiversidade, que precisa ser observado. O Cerrado tem esse papel tão importante de infiltrar e verter essas águas para todos os outros cantos do país”, resume Isabel Figueiredo, pesquisadora do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN) e especialista no bioma.
Menor proteção legal
Diferentemente da Amazônia, onde a área de vegetação nativa protegida em propriedades rurais é de 80%, o Cerrado conta com apenas 20% de área de reserva legal (no Cerrado localizado em estados da Amazônia Legal, o percentual é de 35%). Isso significa que, segundo a determinação do Código Florestal, 80% da área dos imóveis rurais no bioma é “desmatável”.
Cabe aos estados a autorização e fiscalização do desmatamento legal – e é justamente aí que reside a principal dificuldade para o controle da derrubada atualmente. Os estados não apenas têm autorizado muito desmatamento como têm dificultado o acesso a informações e monitoramento dessas autorizações.
“A área de proteção definida pelo Código Florestal é inferior ao que se mostrou ser necessário para manter as funções ecossistêmicas do Cerrado, sobretudo essa de reposição de água. A linha de corte para evitar o ponto de não retorno no bioma [ponto em que a degradação e perda de funções se torna irreversível] seria de 40%”, explica Guilherme Eidt, também pesquisador do ISPN.
“Essa perspectiva de manutenção dos serviços ecossistêmicos não é atendida pelo Código Florestal, que sinaliza um campo aberto para a expansão do agronegócio. Isso já ocorre desde os anos 1980, mas tem um impulso muito mais forte a partir do final da década de 1990 e início dos anos 2000, quando há um direcionamento de políticas para a expansão em regiões de vegetação nativa do Cerrado”, completa.
A situação se agrava porque, mesmo insuficiente, o Código Florestal não tem sido plenamente cumprido para a concessão de autorizações de desmatamento, que são marcadas por irregularidades.
É o que explica Margareth Maia, professora da Universidade Federal da Bahia e diretora do Instituto Mãos da Terra (Imaterra). O instituto conduz, desde 2021, um estudo sobre as autorizações de supressão (conhecidas pela sigla ASV) emitidas na Bahia. A primeira parte da pesquisa, publicada no ano passado, analisou 5.126 portarias de autorizações de supressão de vegetação nativa publicadas no Diário Oficial do estado entre setembro de 2007 e junho de 2021. Com elas, foi liberada a derrubada de 1 milhão de hectares em todos os biomas da Bahia, área equivalente a 32 cidades de Salvador.
Do total autorizado, 80% está concentrado no Oeste do estado, fronteira agrícola mais ativa do chamado Matopiba (região formada pelos estados de Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia). Entre as irregularidades encontradas, estão conflitos com comunidades tradicionais, uso de técnicas que podem ser fatais para captura da fauna (como a utilização de cachorros para espantar os animais) e pareceres assinados por servidores sem a qualificação técnica estabelecida.
Além disso, o estudo analisou mais de perto 26 processos de ASV à luz da legislação ambiental, produzindo pareceres técnicos. “O argumento de Márcia Telles (diretora do Instituto de Meio Ambiente e Recursos Hídricos, o Inema, por mais de dez anos e exonerada do cargo no último sábado, 9/9), quando questionada, sempre foi de que todo o processo foi feito na legalidade. Mas quando demos um zoom nesses processos vimos que não era assim. Era uma suposta legalidade. Todos os processos tinham irregularidades, que contestamos através de representações ao Ministério Público”, conta Maia.
A segunda parte da pesquisa do Imaterra e os dados consolidados, ainda inéditos, serão publicados em livro neste mês.
“Cenário de caos”
Entre agosto de 2022 e julho de 2023, o Cerrado registrou alta de 16,5% nos alertas de desmatamento do sistema Deter, do Inpe, na comparação com o ano anterior. O período corresponde ao corte utilizado pelo Inpe para medir o desmatamento nos biomas (agosto de um ano a julho do ano seguinte) A área sob alertas de desmatamento nesse período, 6.359 km2, é a maior já registrada na série histórica do Inpe, iniciada em 2017.
Em julho deste ano, a alta de alertas do Deter no Cerrado foi de 26%, na comparação com julho de 2022. Em agosto, a alta foi de apenas 2% na comparação com o mesmo mês no ano passado, o que, segundo a ministra Marina Silva, pode indicar um início de reversão da curva ascendente de desmatamento no bioma, o que já se verificou na Amazônia.
As ações de comando e controle, incluindo embargos remotos, foram retomadas pelo Ibama e ICMBio, mas ainda esbarram nas dinâmicas locais de autorização do desmatamento legal. De janeiro a julho, a área autorizada para desmatamento no Cerrado foi de 482.381,4 hectares. No mesmo período, o Deter registrou 491.045 ha sob alertas de desmatamento.
“Praticamente a totalidade do desmatamento nesse período teve base em autorizações emitidas pelos órgãos estaduais de meio ambiente. Claro que esse dado não pode ser olhado apenas dessa maneira, porque em alguns casos dá área sob alertas de desmatamento pode ter existido, sim, desmatamento ilegal, o que está sendo verificado pelo Ibama de forma muito detalhada. Mas o fato é que o Cerrado permite uma autorização maior, que vem sendo dada de forma, no mínimo, discutível”, afirmou João Paulo Capobianco, secretário-executivo do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, em agosto.
Relatos ouvidos pela reportagem descrevem um “cenário de caos”, especialmente na Bahia. Como mostrou o último Relatório Anual do Desmatamento do Mapbiomas, a região do Matopiba concentrou 26,3% de todo o desmatamento no Brasil.
Na Bahia, além das emissões maciças de autorizações de supressão de vegetação e da descentralização descontrolada dessa atribuição para municípios – onde pressões políticas e econômicas incidem muito mais fortemente sobre os órgãos ambientais – os relatos dão conta da instituição de “reservas legais móveis”, ou seja, a realocação de reservas legais dentro das fazendas. Isso acontece porque as autorizações têm sido emitidas sem que as propriedades tenham seu Cadastro Ambiental Rural (chamado de Cefir no estado) validado, diferentemente do que prevê o Código Florestal.
“Teoricamente, não seria possível conceder Autorização de Supressão de Vegetação para uma propriedade que não tivesse o CAR validado, já que é o cadastro que observa se a área de reserva legal está correta. Como há atraso na validação, os estados têm emitido autorizações independentemente disso, o que gera uma situação capenga: enquanto o CAR não é validado, as fazendas tem trocado de lugar as suas reservas legais”, explica Isabel Figueiredo.
Na prática, sem registro e controle, os proprietários modificam a área assinalada como reserva legal em seus cadastros quantas vezes quiserem, ao solicitarem autorizações para desmatamento. Assim, uma área antes identificada no cadastro como parte da reserva legal obrigatória pode ser objeto de um pedido de supressão de vegetação, enquanto se “empurra” a reserva para outra parte – que também não será fiscalizada. Enquanto não é validado, o cadastro é modificado e as reservas “flutuam” para onde for mais conveniente, facilitando que a supressão de vegetação avance sobre áreas protegidas .
Para Isabel Figueiredo, as demandas por uma política pública de controle do desmatamento no Cerrado passam, necessariamente, por uma articulação efetiva entre governo federal e estados. “Além de se articular com os estados, é preciso ir além do discurso de que ‘podemos desmatar 80%’. É preciso observar outras questões, como a fundiária, os casos de grilagem da terra e de violações de direitos humanos de populações tradicionais que ocupavam essa região. É preciso também monitorar os processos de outorgas para uso de água e recargas de aquífero – importantes para o próprio agronegócio. Nossa expectativa é que o governo federal olhe para o Cerrado com a importância que ele tem, que seja mais inovador e mais arrojado na conservação do bioma. Precisamos de uma meta de preservação para além do Código Florestal, ou veremos o colapso ambiental do país inteiro”, afirma.
O governo federal deve anunciar o PPCerrado, plano de controle do desmatamento inspirado no bem-sucedido PPCDAm, da Amazônia, neste mês. Procurados, a Secretaria Estadual do Meio Ambiente da Bahia e o Inema não se pronunciaram.
*Leila Salim, jornalista e doutora em Comunicação e Cultura pela UFRJ, trabalha no Observatório do Clima e no Fekebook.eco