Brasil pode dobrar produção agrícola sem derrubar um hectare

Como produtor global de alimentos que sofre com a crise climática, país deve aliar agricultura e biodiversidade com políticas públicas, revela estudo

Por Elizabeth Oliveira | ODS 15 • Publicada em 17 de julho de 2024 - 09:12 • Atualizada em 25 de julho de 2024 - 00:04

Exemplo de paisagem multifuncional na região serrana do Rio de Janeiro. De acordo com o estudo, “é possível conciliar agricultura e conservação com tomada de decisão baseada no conhecimento científico”. Foto Rachel Bardy (BPBES)

É positiva a principal mensagem do Relatório Temático sobre Agricultura, Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos, lançado durante entrevista coletiva nesta terça-feira, dia 16. Um time de 35 pesquisadores destaca, no Sumário para Tomadores de Decisão, que o Brasil pode liderar pelo exemplo um movimento de fortalecimento da sustentabilidade agrícola. Com isso, compatibilizaria as atividades convencionais que estão entre as principais emissoras de gases de efeito estufa no país, com a proteção da natureza da qual dependerá, cada vez mais, em cenários de agravamento da crise climática que têm causado prejuízos bilionários ao setor. Além disso, ampliaria a inclusão social no campo. “Sigam as orientações. Temos espaço para dobrar a produção agrícola sem derrubar um hectare”, afirma o pesquisador Eduardo Assad, consultor do Observatório de Bioeconomia da Fundação Getúlio Vargas (FGV), um dos autores da publicação e um dos criadores do Plano ABC de Agricultura de Baixo Carbono.

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Exemplos nesse sentido já estão em curso e, para ampliação de escala, dependem de vontade política para a real implementação de políticas públicas já construídas, assim como de fortalecimento dos processos de governança democrática do setor. É o que ressaltam os pesquisadores participantes da coletiva que trabalharam durante três anos no relatório. A publicação completa envolveu cerca de cem profissionais de 41 instituições. Essa nova síntese de produção de conhecimento, sobre uma temática de importância fundamental para o país, é mais uma das compilações lançadas pela Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Recursos Ecossistêmicos (BPBES), braço nacional da Plataforma Intergovernamental de Biodiversidade e Recursos Ecossistêmicos (IPBES, na sigla em inglês), popularmente denominada de IPCC da Biodiversidade por exercer um papel semelhante ao desse Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas.

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Alvo de grandes críticas por parte da sociedade brasileira, pelos altos impactos causados com o uso intensivo de agrotóxicos e por práticas insustentáveis como o desmatamento e as emissões de carbono e outros gases de efeito estufa, o agronegócio também tem um peso forte na economia nacional e precisa ajustar seus rumos. Em 2020, seu valor de produção chegou a R$ 554,67 bilhões. Mas reduzir a sua pegada ecológica de longo alcance precisa ser um compromisso assumido sem demora, segundo alertam os pesquisadores. Como desafio, mencionam que a agricultura é vilã e é vítima quando se trata de efeitos das mudanças climáticas que, entre outros impactos, vêm causando perdas de safras por falta ou excesso de chuvas.

Cumprir a legislação é parte importante da solução

Para o pesquisador Eduardo Assad, a perspectiva de conciliar agricultura e conservação da natureza deve avançar depois dos estragos causados pelos efeitos das enchentes no Rio Grande do Sul nos últimos meses. Ele acredita que o cenário terá efeitos pedagógicos. “A catástrofe deixa claro o que acontece quando se destrói a biodiversidade. Os municípios que atuam com agroecologia foram os menos atingidos”, analisa ao defender a importância do cumprimento de legislações como  a Lei de Proteção da Vegetação Nativa, também chamada de novo Código Florestal. Desde instituída, em 2012, enfrenta resistências de parte de produtores rurais para a manutenção ou regeneração de áreas que devem ser protegidas nas suas propriedades. Segundo o relatório, somente com o cumprimento dessa legislação seria possível evitar a perda de 32 milhões de hectares de vegetação nativa no país, entre 2020 e 2050.

Ao exemplificar que o Brasil tem explorado a natureza à exaustão, tendo construído historicamente o seu processo de desenvolvimento por meio de ciclos econômicos insustentáveis, como os do café, do ouro, da cana, entre outros, Assad alerta que  os tempos são outros, com regras do jogo dos mercados consumidores devendo pautar mudanças de cenários para fornecedores de commodities. “Desde que derrubou o seu primeiro pau-Brasil, o Brasil pensou que destruiria a biodiversidade com seus ciclos. A história se repete agora com a soja. Mas o mercado já está deixando claro que não vai comprar soja de áreas desmatadas. A China já declarou isso e a União Europeia também”, observa.

Rachel Bardy Prado, pesquisadora da Embrapa Solos e coordenadora da publicação, explica que os objetivos do trabalho são de síntese do conhecimento científico existente sobre essa temática em suas interfaces, além de apontar caminhos envolvendo as agendas em foco para tomadores de decisão como governos, associações de produtores, organizações não governamentais, parlamentares e empresas. “Temos diversas experiências exitosas no país, em diferentes biomas, setores e escalas. É possível conciliar agricultura e conservação com tomada de decisão baseada no conhecimento científico”, afirma em relação às mensagens-chave do relatório. Ela acrescenta que a integração de lavoura-pecuária-florestas, ainda que precise ganhar mais escala, também já é uma realidade no país.

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Uma combinação de fatores deve orientar os tomadores de decisão sobre o tema, podendo dessa forma ampliar vantagens importantes em diferentes dimensões no país. “No contexto brasileiro, a transição para uma agricultura sustentável deve ser orientada, para além dos aspectos ambientais, a partir da ótica da justiça social. Políticas públicas de combate à vulnerabilidade socioeconômica e às desigualdades sociais, e uma sociedade cada vez mais bem informada, articulada e participativa são a direção promissora para um futuro sustentável”, defende o estudo.

Gerhard Ernst Overbeck, professor do Instituto de Biociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenador do Relatório, explica durante a coletiva que a agricultura é o primeiro setor a ser afetado pelas mudanças climáticas, envolvendo nesse contexto desafiador, riscos de queda de produtividade e de alteração de adaptação para algumas culturas agrícolas, conforme modelos e cenários já construídos cientificamente. Diante disso, o especialista chama a atenção para a importância das práticas de manejo com potencial de sequestro de carbono, a adoção de paisagens multifuncionais caracterizadas por mais diversidade, em contraposição ao modelo de monocultura, além da conciliação de produção agrícola com a conservação de serviços ecossistêmicos e iniciativas de inclusão social.

Todas essas são sugestões apresentadas no estudo para a consolidação de um modelo chamado de agricultura 4.0. Nesse sistema mais complexo, além das tecnologias empregadas, é preciso aliar conhecimentos ancestrais de povos tradicionais. Aos tornar as paisagens multidimensionais, segundo Overbeck, é possível reduzir o uso de insumos, aumentar a resiliência dos produtores rurais e valorizar a sociobiodiversidade da qual fazem parte grupos sociais como os povos indígenas, comunidades extrativistas, quilombolas, assentamentos rurais que atuam com agroecologia, entre outros com modos de vida e reprodução cultural diferenciados.

A integração entre pecuária e floresta é outro exemplo de conciliação de sucesso entre o agronegócio e a preservação da biodiversidade. Foto Carlos Nabinger

Mas para se chegar a esse cenário, é preciso incorporar a agroecologia na assistência técnica, como observa Overbeck. O pesquisador também menciona o sistema de Pagamento por Serviços Ambientais (PSA) como iniciativa que tem exemplos exitosos no Brasil, devendo ser ampliado e fortalecido. Acrescenta, ainda, “que o Brasil tem um arcabouço legal sofisticado e complexo, mas precisa trabalhar para aprimorar mecanismos de governança mais fortes para o setor agrícola”.

Ele ainda chama a atenção para a importância da agricultura familiar, nem sempre bem dimensionada na sociedade brasileira e mesmo na mídia, conforme opina na apresentação. O relatório sinaliza que esse segmento socioeconômico responde por cerca de 70% dos alimentos consumidos pela população brasileira. Em 2017, seu valor de produção foi de R$ 106,5 bilhões.

Joyce Ferreira, da Embrapa Amazônia Oriental, destaca que esse segmento social precisa ser fortalecido com a retomada de políticas públicas que foram descontinuadas e prejudicadas nos últimos anos, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) que geram demanda para a agricultura familiar.

 Para Miguel Calmon, consultor do World Resources Institute (WRI), “o Brasil pode ser uma potência agroambiental”, embora considere que a lentidão na implementação de sua legislação ambiental é uma questão prejudicial e desafiadora para o próprio setor. Como exemplo, menciona os entraves ao Código Florestal. Da mesma forma, menciona que a questão fundiária é um problema ainda maior em regiões como a Amazônia. Para avançar na sustentabilidade agrícola ele defende agilidade nas decisões tomadas. Também considera como questão problemática que ainda vem ocorrendo muito desmatamento legal, sobretudo no Cerrado, quando esse processo não deveria mais acontecer.

Como parte da grande quantidade de informações sistematizadas, o relatório alerta que há uma tendência de expansão da agricultura nos próximos anos com potenciais impactos previstos envolvendo áreas protegidas e ampliando pressões sobre populações tradicionais, o que amplia o desafio do setor e de toda a sociedade. “Essa expansão agrícola intensificará a pressão sobre unidades de conservação e terras indígenas, com impactos negativos para o meio ambiente e as comunidades locais”, alerta o estudo.

Elizabeth Oliveira

Jornalista apaixonada por temas socioambientais. Fez doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento (PPED), vinculado ao Instituto de Economia da UFRJ, e mestrado em Ecologia Social pelo Programa EICOS, do Instituto de Psicologia da UFRJ. Foi repórter do Jornal do Commercio do Rio de Janeiro e colabora com veículos especializados, além de atuar como consultora e pesquisadora.

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