Quando paixão rima com conservação

Livro do Funbio

Acordo entre Brasil e EUA transformou parte da dívida externa em preservação ambiental

Por Bernardo Camara | FlorestasODS 13ODS 14 • Publicada em 6 de janeiro de 2016 - 08:00 • Atualizada em 2 de setembro de 2017 - 15:56

Livro do Funbio

Era aniversário de um amigo. Luz baixa, bebidinhas, papo-furado, alguém puxou o violão. O primeiro acorde se espalhou como uma brisa que foi silenciando os convidados, um a um. O “Lamento Sertanejo”, de Gil e Dominguinhos, inundou aquele quarto e os meus olhos: chorei.

Sempre achei linda aquela música. Mas naquele dia, ela bateu de um jeito especial em mim: eu estava impregnado de sertão. Tinha acabado de atravessar as páginas áridas de “Grande Sertão Veredas”, “Morte e vida Severina” e “Vidas secas”. Aquela viagem sensorial era o prefácio de uma outra que estava por vir. Acompanhado da fotógrafa e amiga Marizilda Cruppe, cruzei 19 mil quilômetros de estradas, rios, florestas, montanhas e gente. Nossa missão era transformar em livro a história de 82 projetos ambientais espalhados pelo Cerrado, Caatinga e Mata Atlântica. O resultado foi o livro “TFCA – A experiência brasileira“.

Tão diversos como os biomas, os projetos tinham uma coisa em comum: foram financiados com recursos do Tropical Forest Conservation Act. O TFCA é uma lei norte-americana que possibilita aos países em desenvolvimento trocar uma parte de suas dívidas externas por investimento local em conservação florestal. Assinado em 1998, a iniciativa só ganhou vida no Brasil em 2010. Enquanto o Ministério do Meio Ambiente e a USAID (Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional) representaram os governos daqui e de lá no acordo, o Funbio (Fundo Brasileiro para a Biodiversidade) foi escolhido para fazer a gestão da verba. A partir daí, mais de US$ 20,8 milhões deram fôlego a 68 instituições, que imediatamente arregaçaram as mangas. Na ponta, os recursos chegaram para gente como César Espírito Santo, da Funatura.

[g1_quote author_name=”Lucas Rodrigues” author_description=”adolescente de 13 anos” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]

Tem gente que ajuda a proteger os bichos e tem gente que mata. Matar eu não mato não. Os bichos têm que viver!

[/g1_quote]

Decidido a transformar o Parque Nacional Grande Sertão Veredas em uma paixão local, ele mirou nos jovens. A organização comprou um ônibus e tirou a criançada das salas de aula para colocá-las cara a cara com o Cerrado. O alvoroço não engana: “Quero voltar mais!”, diz Lucas Rodrigues, 13 anos.

Longe dali, num oásis de Mata Atlântica, Maurício Talebi e Pedro Soares, da Associação Pró-Muriqui, pensam o mesmo. Foram eles que abriram 300 km de trilha no Parque Carlos Botelho (SP) para seguir de baixo os caminhos que o maior primata das Américas faz a 30 metros de altura.  E foram eles que descobriram que a espécie está criticamente em perigo de
extinção. “Eu queria ser um muriqui”, diz Pedro, o mateiro, que, há 20 anos, parece viver para garantir que a população que restou de 800 muriqui-do-sul também continue vivendo.

A paixão que a dupla transborda enquanto avança pela mata escura também tem seu lugar sob o sol quente do sertão pernambucano. Só assim Danilo Soares, da Associação Plantas do Nordeste, conseguiu driblar a desconfiança do sertanejo e convencer as comunidades a trabalhar com o manejo florestal. Foi um custo. “Desse plano de manejo aí a gente não entendia é nada, achava que era conversa”, diz o agricultor José Carlos da Silva. “Mas quando a gente veio perceber que era a solução, pronto: todo mundo sossegou e agora o plano de manejo é a felicidade da gente”.

No Delta do Parnaíba, no Piauí, Flávio Crespo, da Comissão Ilha Ativa (CIA), também teve de ser persistente. Ele fez o que pôde para ver de volta o brilho nos olhos de Maria da Paz, que apesar do nome, tinha perdido sua paz. Artesã de mão cheia, fazia a palha da carnaúba virar de um tudo: resolveu criar, com filhas e netas, o grupo Quatro Marias. Mas uma tragédia lhe atravessou o destino. Um carro desgovernado atropelou uma das filhas Maria. Ela pensou em desistir. Mas com a força da CIA, foi retomando o vigor. Entre abraços, se juntou a amigas, e onde eram quatro, hoje são sete Marias. “Tem Maria do bordado, do crochê, de tudo”, diz ela, de volta à paz.

Quando embarcamos nessa viagem, o TFCA completava cinco anos por aqui. Era hora de olhar para as transformações. Mas com tanta história, não bastava falar de números. Encaramos sol, chuva e lama até as orelhas para falar de vidas. Porque em última instância – ou primeira? – é disso que se trata a conservação ambiental.

 

Bernardo Camara

Formado em Jornalismo pela PUC-Rio, cobre temas socioambientais há mais de uma década. Viveu 4 anos na Amazônia e já colaborou como repórter, produtor, editor e fotógrafo em projetos de O Eco, Greenpeace, Revista de História da Biblioteca Nacional, Instituto Socioambiental (ISA), Funbio, entre outros.

Newsletter do #Colabora

Um jeito diferente de ver e analisar as notícias da semana, além dos conteúdos dos colunistas e reportagens especiais. A gente vai até você. De graça, no seu e-mail.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Compartilhe:

Sair da versão mobile