Quando a espessa nuvem de gafanhotos se aproximou – a uma velocidade de quase 20km/h – da aldeia de Katikita, um dos muitos vilarejos rurais de Embu, na região central do Quênia, a população local sentiu um medo que só os mais velhos conheciam. “Nunca tinha visto tantos. Eles quase cobriram o céu todo. Nos apavoramos porque o barulho era ensurdecedor, pareciam milhares de abelhas”, relatou a jovem agricultora, Karimi Phides, à jornalista Sally Haiden do Irish Times.
O medo se espalhou rapidamente por todo o condado de Embu, localizado a pouco mais de 150km de distância da capital Nairóbi e com cerca de 500 mil pessoas vivendo da agricultura. Em dois dias os “nziges” (gafanhoto em suaíli, língua franca e mais falada em toda a região da África Oriental) arrasaram quase 40% das plantações e a situação só não foi pior porque as chuvas fora de hora obrigaram os agricultores locais a antecipar a colheita.
Para Cyril Ferrand, líder da Equipe de Resiliência Para a África Oriental da FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura), “foi um pequeno golpe de sorte”. Em entrevista ao canal de notícias Al Jazeera, Ferrand explicou um pouco mais sobre a praga de gafanhotos que está, desde dezembro de 2019, atacando as áreas agrícolas de diversos países da África Oriental e da Península Arábica como Etiópia, Eritreia, Djibuti, Somália, Quênia, Iêmen e Arábia Saudita.
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Veja o que já enviamosA grande questão aqui é que mais de 11 milhões de pessoas já estão em emergência humanitária e insegurança alimentar na região do Chifre da África. O que tememos é que essa imensa invasão de gafanhotos do deserto e a quantidade de comida que esses gafanhotos estão comendo venha a causar uma deterioração ainda maior da situação alimentar nessas regiões
[/g1_quote]Para o integrante da FAO, o pior ainda pode estar por vir. “Quando as nuvens (de gafanhotos) chegaram à região central da Somália e ao norte do Quênia, o período de colheita já havia começado e a maioria das espigas de milho e o sorgo já estavam protegidos. Então, os gafanhotos comeram as folhagens e as espigas que ainda não estavam totalmente maduras. Isso minimizou o impacto nas colheitas em dezembro e janeiro. Por outro lado, tivemos danos enormes nas áreas de pasto, porque as chuvas tornaram as pastagens abundantes. A nossa grande preocupação neste momento é que estamos no fim das chuvas curtas e temos, à frente, o período das chuvas mais extensas nessas regiões. É essa colheita, a das próximas semanas, e o plantio dos próximos meses que estão ameaçados”, alerta ele.
A nuvem de gafanhotos, composta por cerca de 200 bilhões de indivíduos, já atacou plantações nas regiões centrais da Somália, no norte do Quênia, na região leste da Etiópia e da Eritreia. Parte dela atravessou o mar vermelho e assaltou áreas agrícolas no Iêmen e na Arábia Saudita. “A grande questão aqui é que mais de 11 milhões de pessoas já estão em emergência humanitária e insegurança alimentar na região do Chifre da África. O que tememos é que essa imensa invasão de gafanhotos do deserto e a quantidade de comida que esses gafanhotos estão comendo venha a causar uma deterioração ainda maior da situação alimentar nessas regiões”, alerta Dominique Burgeon, diretor da Divisão de Emergência e Resiliência da FAO. Um enxame considerado pequeno pela FAO pode consumir, em um único dia, o suficiente para alimentar cerca de 35 mil pessoas.
Mudanças climáticas e conflitos armados
Essa está sendo considerada a maior infestação por gafanhotos do deserto dos últimos 25 anos na Somália e na Etiópia. E a maior dos últimos 70 anos no Quênia, que já tem mais de 70 mil hectares de terra infestados. Um gafanhoto tem vida média de três meses e um enxame deles costuma a ter uma média de 150 milhões de indivíduos por quilômetro quadrado, porém os números registrados pela FAO são superlativos. O sub-secretário de Assuntos Humanitários da ONU, Mark Lowcock, afirmou que uma nuvem de 2,4 mil quilômetros quadrados foi avistada na fronteira entre o sudoeste da Somália o nordeste do Quênia na primeira semana de fevereiro. Um enxame desse porte reúne cerca de 200 bilhões de insetos e consome o suficiente para alimentar 84 milhões de pessoas em um único dia.
[g1_quote author_name=”Crystal Wells” author_description=”Representante da Cruz Vermelha Internacional na África” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Muitas das comunidades atacadas pelas nuvens de gafanhotos estão sendo vítimas não só de questões climáticas, mas também da violência. A região central da Somália, por exemplo, vive décadas de conflitos armados. As regiões sul e sudeste da Etiópia (as regiões oromo e somali do país) também vivem conflitos étnicos domésticos há um longo período
[/g1_quote]À praga da gafanhotos e à emergência alimentar, fruto de uma seca que que estendia há mais de três anos em partes da Somália, Quênia e Etiópia, somam-se também as consequências diretas de mais dois fatores: as mudanças climáticas e os conflitos armados. Em 2019, cinco ciclones tropicais se formaram e atingiram os países do mar da Arábia, parte do oceano Índico que vai da Somália até a Índia. De acordo com o Departamento Meteorológico da Índia, há 177 anos não se registrava uma quantidade tão grande deles na região. Pawan, o último a se formar, depois dos ciclones Vayu, Hikka, Maha e Kyarr, atingiu com força a região nordeste da Somália no início de dezembro, promovendo enchentes e alagamentos em regiões cortadas pelo rio Eyl. Em dois dias, o volume de chuvas foi o de três vezes a média anual na região da Puntlândia, de acordo com o Gerenciamento de Informações sobre Água e Terras da Somália (Swalim), instituição ligada à FAO.
A consequência direta desses alagadiços foi a criação de um ambiente ideal para a incubação e sobrevivência de centenas de milhares de ovos de gafanhotos do deserto, que eclodiram em meados de dezembro, dando origem aos enxames que, rapidamente, atingiram números alarmantes. No dia primeiro de fevereiro de 2020 o governo somali declarou estado de emergência por causa dos enxames que atingiram as regiões central e sul do país, arrasando as colheitas e agravando a situação de emergência alimentar. Uma das áreas mais preocupantes é o Sudão do Sul, por causa da dificuldade em se chegar a um acordo efetivo de paz que encerra os seis anos de guerra civil. A ONU e a FAO estimam que cerca de 5,5 milhões de pessoas passem fome no país em 2020.
Em 2018 a revista Science publicou o estudo conjunto de um grupo de acadêmicos estadunidenses das mais diversas áreas de estudos (desde a Oceanografia até Estudos Atmosféricos e Biologia), cujos modelos de análise demonstraram uma relação direta entre a elevação das temperaturas no planeta e o aumento na reprodução dos insetos, entre eles os gafanhotos. O estudo também aponta que haverá uma queda entre 10% e 25% na produção das três maiores culturas de grãos – trigo, arroz e milho – nas zonas temperadas do planeta por causa da propensão maior ao surgimento de pragas.
“Muitas das comunidades atacadas pelas nuvens de gafanhotos estão sendo vítimas não só de questões climáticas, mas também da violência. A região central da Somália, por exemplo, vive décadas de conflitos armados. As regiões sul e sudeste da Etiópia (as regiões oromo e somali do país) também vivem conflitos étnicos domésticos há um longo período”, comentou Crystal Wells, representante do Comitê Internacional da Cruz Vermelha para a África.
Identificação de ovos para combate à praga
O fato de a Somália ter sido o epicentro da eclosão dos ovos e do surgimento dos enxames de gafanhotos do deserto ilustra bem a dificuldade de se combater a praga nas áreas controladas pelo grupo fundamentalista islâmico Al-Shabaab, que há uma década e meia controla boa parte das áreas central e sul do país. São justamente as regiões onde o monitoramento da FAO identificou as áreas de eclosão dos ovos, locais onde o combate à praga é virtualmente impossível de ser realizado. “Apesar dessa dificuldade na Somália, estamos fazendo um extenso trabalho monitoramento dos enxames. A dificuldade é a grande velocidade com a qual eles se locomovem. Podem cobrir até 150 quilômetros por dia com a ajuda dos ventos. Mas estamos mapeando as áreas em que os ovos estão sendo postos para evitar que sejam chocados”, comenta Stephen Nkoja, diretor da DLCO-EA, a Organização de Controle de Gafanhotos do Deserto da África Oriental.
[g1_quote author_name=”Cyril Ferrand” author_description=”Líder da Equipe de Resiliência Para a África Oriental da FAO” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]“Sudão, Eritreia, Djibuti e Etiópia reagiram rápido aos avisos da FAO e fizeram um bom trabalho de identificação de algumas regiões onde os ovos estavam incubados. A questão aqui não foi a falta de preparação dos países, mas as condições climáticas que suplantaram em muito as capacidades que esses Estados têm para combater uma praga dessa magnitude. A escala foi tão grande que surpreendeu a todos
[/g1_quote]A DLCO-EA é diretamente ligada à ONU e foi criada em Adis Abeba, capital da Etiópia, em 1962 por influência da própria FAO. Atualmente é formada pelo Uganda, Quênia, Tanzânia, Sudão, Sudão do Sul, Etiópia, Eritreia, Somália e Djibuti e tem como objetivo manter um fórum permanente para a troca de informações e a manutenção de um sistema de vigilância e de combate aos enxames de gafanhotos do deserto. Isso porque, no início da década de 1960, ainda estava recente a memória de uma das mais extensas e destrutivas pragas, que durou quase toda a década 1940, que levou à morte de centenas de milhares de pessoas à morte por inanição em regiões cujas plantações foram totalmente dizimadas. Com o sucesso das políticas preventivas, as ações do DLCO foram ampliadas nos anos 1980 e passaram a incluir o combate a outras pragas regionais como a mariposa africana ou lagarta-do-capim-do-mato (Spodoptera exempta), pássaros comedores de grãos como a quelea (Quelea quelea) e a mosca tsé-tsé, causadora das doenças de nagana e do sono.
A última grande praga de gafanhotos a atingir a região aconteceu entre os anos de 2003 e 2005, quando centenas de milhares de ovos eclodiram na região sul do antigo Sudão, que hoje é o Sudão do Sul, e do Chade. O enxame avançou pela Etiópia, Eritréia e norte da Somália – destruindo entre 80 e 100% das colheitas de cereais, até 90% das leguminosas e entre um terço e 85% das pastagens – até atravessar o Mar Vermelho e atingir a península Arábica. Antes dela, os países da região também já haviam tirado lições importantes da praga que surgiu na mesma região, entre 1987 e 1989, e avançou até o Paquistão e a Índia. Desta vez, a situação se agravou por conta das mudanças climáticas na região, exigindo um esforço conjunto maior dos países do Chifre da África na melhora dos sistemas de monitoramento e de controle. “Para além disso, também é necessário focar na proteção da vida das pessoas e no atendimento emergencial para quem teve a sua colheita perdida e não tem condições de se alimentar ou iniciar um novo plantio”, lembra Crystal Wells.
[g1_quote author_name=”Cyril Ferrand” author_description=”Líder da Equipe de Resiliência Para a África Oriental da FAO” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Não podemos nos enganar. A situação deve piorar um pouco mais até que comece a melhorar. O ciclo de vida dos gafanhotos do deserto e a altíssima taxa de reprodução deles, 20 vezes a cada três meses, nos fazem estimar que o número vá aumentar cerca de 20 vezes até fins de março, podendo chegar a 400 vezes mais até agosto. Por isso temos que diminuir as colônias de gafanhotos para um número que não ameace a segurança alimentar na região
[/g1_quote]Cerca de um terço dos US$ 76 milhões necessários para o combate à praga de gafanhotos do deserto, pedido oficialmente pela FAO, foi conseguido com recursos da própria entidade e também através de um fundo administrado pelos países DLCO-EA e cerca de US$ 10 milhões vieram do Fundo Central de Respostas de Emergência, da ONU. Os recursos já estão sendo usados em ações de vigilância, monitoramento e controle no Quênia, na Etiópia e na Eritreia. Se não fossem as ações preventivas dos países do Chifre da África, a situação poderia ser ainda pior. “Sudão, Eritreia, Djibuti e Etiópia reagiram rápido aos avisos da FAO e fizeram um bom trabalho de identificação de algumas regiões onde os ovos estavam incubados. A questão aqui não foi a falta de preparação dos países, mas as condições climáticas que suplantaram em muito as capacidades que esses Estados têm para combater uma praga dessa magnitude. A escala foi tão grande que surpreendeu a todos”, afirma Cyril Ferrand. Tanto que, em janeiro de 2020 um avião da Ethiopian Airlines teve que mudar de rota para desviar da nuvem de gafanhotos.
Os esforços agora são para que a próxima onda de gafanhotos, cujos ovos já estão sendo postos desde o começo de fevereiro de 2020 e devem se chocar entre o fim de março e o início de abril, não atinjam o Sudão do Sul, o Uganda e a Tanzânia. “Mas não podemos nos enganar. A situação deve piorar um pouco mais até que comece a melhorar. O ciclo de vida dos gafanhotos do deserto e a altíssima taxa de reprodução deles, 20 vezes a cada três meses, nos fazem estimar que o número vá aumentar cerca de 20 vezes até fins de março, podendo chegar a 400 vezes mais até agosto. Por isso temos que diminuir as colônias de gafanhotos para um número que não ameace a segurança alimentar na região”, conclui Cyril Ferrand.
Embora a própria FAO incentive, desde 2013, o consumo de gafanhotos como um alimento rico em proteínas, zinco e ferro, tanto a Organização quanto os governos dos Estados atingidos pela praga não incentivam as populações a comer os insetos como solução para acabar com as infestações. “Primeiro, porque não há como determinar quais deles foram pulverizados com pesticidas para o controle de pragas. Em segundo lugar porque é impossível acabar com uma praga dessas comendo gafanhotos. Quem consegue comer 40 milhões de insetos em um ou dois dias?”, comenta Stephen Njoka. “Vamos nos ater aos esforços que cada um precisa fazer, pessoas comuns e governos, sem apelar para soluções mágicas”, ele conclui.