Cláudio Ângelo*
Os dois recordes históricos sucessivos de calor na Antártida registrados na última semana podem ter relação direta com as tempestades que castigaram o Sudeste neste início de ano. A hipótese foi traçada por um cientista brasileiro analisando o caminho das massas de ar entre o continente austral e a América do Sul.
Como frequentemente ocorre com extremos climáticos, esses dois fenômenos são complexos e é difícil atribuí-los diretamente ao superaquecimento da Terra. Mas o climatólogo Francisco Aquino, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, teoriza que uma união até aqui nunca antes observada entre os efeitos do aquecimento global e da redução do buraco na camada de ozônio pode ajudar a explicar ambos.
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[g1_quote author_name=”Marcio Francelino” author_description=”Engenheiro agrônomo e pesquisador da Universidade Federal de Viçosa” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]No dia 9 de fevereiro eu estava na estação [brasileira] Comandante Ferraz e soube que tinham registrado a temperatura de 19,38 graus C. Fiquei pasmo. Fui então verificar as temperaturas dos nossos sítios que possuem sistema de envio de dados via satélite e, quando observei os registros da ilha Seymour, o espanto foi ainda maior
[/g1_quote]Nesta quinta-feira (13/02), o jornal The Guardian publicou resultados de medições de cientistas brasileiros na ilha Seymour, na ponta leste da Península Antártica, segundo as quais a temperatura no último dia 9 bateu escaldantes (para padrões antárticos) 20,75 graus C. Isso ocorreu dois dias depois de os argentinos terem medido a noroeste dali, na base Esperanza, 18,3oC, até então a temperatura mais alta já registrada no continente – ahan – gelado.
Os recordes vêm na esteira do mês de janeiro mais quente no mundo dos últimos 140 anos, segundo dados da Noaa (Agência Nacional de Oceanos e Atmosfera dos EUA), e do segundo ano mais quente desde o início das medições.
O engenheiro agrônomo Márcio Francelino, da Universidade Federal de Viçosa, líder da equipe que fez a medição, está na Antártida e relatou ao Observatório do Clima como o registro foi feito. “No dia 9 de fevereiro eu estava na estação [brasileira] Comandante Ferraz e soube que tinham registrado a temperatura de 19,38oC. Fiquei pasmo. Fui então verificar as temperaturas dos nossos sítios que possuem sistema de envio de dados via satélite e, quando observei os registros da ilha Seymour, o espanto foi ainda maior.”
[g1_quote author_name=”Jefferson Simões” author_description=”Glaciologista da Universidade Federal do Rio Grande do Sul” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Estamos numa onda de calor inédita. Nós não temos nenhum registro disso desde que se começou a medir temperaturas na Antártida, na primeira metade do século 20
[/g1_quote]Francelino ressalta que sua equipe estuda o permafrost (solos congelados) e não a meteorologia, e que o método de coleta de dados de temperatura de seu equipamento – a 1,5 m do solo e não a 2 m, como nas estações meteorológicas – não permite que o recorde seja computado como registro oficial pela Organização Meteorológica Mundial, diferentemente da medição feita na base Esperanza.
“Mas o mero registro de temperaturas tão anômalas é algo que deve ser melhor estudado”, afirmou. Aquela região da Antártida tem temperaturas médias de 0,5oC em fevereiro. Neste mês as médias foram de 3,9oC. “Em 17 anos vindo para cá eu nunca tinha experimentado temperaturas tão elevadas”.
“Estamos numa onda de calor inédita. Nós não temos nenhum registro disso desde que se começou a medir temperaturas na Antártida, na primeira metade do século 20”, afirmou ao OC o glaciologista Jefferson Simões, também da UFRGS, que coordena o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia da Criosfera.
Olhando os mapas de ventos do hemisfério Sul nas últimas semanas, Francisco Aquino notou desde meados de janeiro uma anomalia nos ventos a 5.000 metros de altitude que favorecem a formação de ondas de calor. Os fortes ventos que sopram em volta da Antártida estão mais lentos neste verão. Isso faz com que a chamada corrente de jato, uma espécie de corredeira aérea que sopra em alta velocidade ao redor do sul do hemisfério Sul, comece a fazer meandros, como um desses rios preguiçosos da planície amazônica.
[g1_quote author_name=”Francisco Aquino” author_description=”Climatólogo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Nas últimas três, quatro semanas, no sul do Brasil vêm passando frentes frias. Estou vendo que ar do mar de Weddell [na Antártida] está se deslocando. A culpa não é só do Atlântico Tropical e da Amazônia
[/g1_quote]Esses meandros favorecem a entrada e a permanência de ar quente principalmente na Península Antártica, porção do continente antártico mais próxima dos outros continentes. Mas também têm outro efeito: o de exportar massas de ar frio antártico para as latitudes mais baixas. No caso, para o Atlântico Sul. “Nas últimas três, quatro semanas, no sul do Brasil vêm passando frentes frias. Estou vendo que ar do mar de Weddell [na Antártida] está se deslocando”, afirmou Aquino.
Essas frentes frias encontram a chamada Zona de Convergência do Atlântico Sul, o fenômeno meteorológico culpado pelas chuvas no Sudeste, e transformam as tempestades, que são normais para esta época do ano, em monstros bombadões capazes de parar uma cidade (São Paulo) e de matar dezenas (Belo Horizonte). “A culpa não é só do Atlântico Tropical e da Amazônia”, afirma o pesquisador gaúcho.
Diminuição do buraco na camada de ozônio
A causa dessa perturbação no regime de ventos ainda precisa ser estudada. Mas Aquino, especialista em conexões climáticas entre Antártida e América do Sul, diz que a diminuição no buraco na camada de ozônio na última primavera pode ter relação com isso.
Um dos efeitos do buraco é manter o interior da Antártida muito frio, criando uma diferença brusca de temperatura com os arredores que favorecem ventos mais fortes. O forte aquecimento da Terra, que aumenta a evaporação dos oceanos, pode ter injetado vapor d’água na estratosfera antártica em setembro do ano passado, inibindo a reação química que destrói a camada de ozônio.
“Em setembro e outubro, tivemos o menor buraco no ozônio da história de nossas vidas”, diz Aquino. “Os ventos diminuíram de velocidade e ondularam.”
O efeito é contraintuitivo: os cientistas até agora achavam que o buraco na camada de ozônio, ao “engarrafar” o frio no interior da Antártida, favorecesse o aquecimento da Península. À medida que a camada de ozônio se recupera, o real efeito do aquecimento global poderá ser visto em todo o continente austral. A julgar por fevereiro de 2020, os auspícios são os piores possíveis.
*Observatório do Clima