No dia 2 de abril de 2025, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, anunciou a imposição de uma série de tarifas alfandegárias abrangendo praticamente todos os países do mundo. A medida foi apresentada como parte da iniciativa de “fazer a América grande novamente” (Make America Great Again – MAGA) e celebrada por seus assessores e apoiadores como o “Dia da Libertação” dos EUA.
No entanto, o tiro saiu pela culatra. As reações, tanto internas quanto externas, foram extremamente negativas, resultando em uma verdadeira “carnificina” no mercado de ações — como destacou a manchete do The Wall Street Journal, um veículo que tradicionalmente não faz oposição ao governo americano (Market Carnage Worsens). As bolsas dos Estados Unidos caíram mais de 10% ao longo da semana, enquanto as perdas globais ultrapassaram US$ 5 trilhões. A maioria dos economistas aponta para a possibilidade de alta da inflação e do desemprego, delineando um cenário de estagflação (estagnação econômica acompanhada de inflação) nos próximos meses de 2025.
Leu essa? Amazônia desponta como nova fronteira global do petróleo
Impor barreiras generalizadas às trocas internacionais é um equívoco, pois o protecionismo mercantilista já foi refutado há mais de 200 anos por Adam Smith (1723-1790) e David Ricardo (1772-1823), que mostraram a importância das vantagens comparativas de um comércio internacional em expansão. O aumento atabalhoado das tarifas vai provocar perdas generalizadas. Todo mundo vai perder, a diferença é que uns vão perder mais do que outros.
Gostando do conteúdo? Nossas notícias também podem chegar no seu e-mail.
Veja o que já enviamosA grande ironia é que a China – alvo preferencial de Donald Trump e a nação líder do comércio internacional – pode se beneficiar da posição isolacionista dos EUA. O protecionismo americano está abrindo portas para o governo chinês fortalecer seus investimentos em uma cadeia global de produção e comércio, visando redesenhar alianças globais e regionais.
Em comunicado de 30 de março, os ministros do Comércio de China, Japão e Coreia do Sul concordaram, de forma inédita, em fortalecer a cooperação na cadeia de suprimentos e ampliar diálogos comerciais. Após o anúncio de 2 de abril, China, Japão e Coreia do Sul aceitaram estabelecer respostas coordenadas ao tarifaço americano. Além disto, Coreia e Japão estudam ignorar sanções dos EUA e retomar a venda de chips para a China. A Europa também se reaproximou da China. A fragmentação da aliança transatlântica representa uma grande vitória estratégica para Xi Jinping.
Como mostrei no artigo “O governo Trump e a desordem do comércio internacional”, publicado aqui no # Colabora (Alves, 10/03/2025), os EUA perderam a liderança do comércio mundial nos anos 2000 e tiveram um déficit comercial de US$ 1,2 trilhões em 2024, enquanto a China teve um superávit de US$ 1 trilhão. Os EUA convivem com os déficits gêmeos (comercial e fiscal) e com uma dívida pública que já supera 100% do PIB e caminha para ultrapassar o recorde atingido durante a Segunda Guerra Mundial. A economia americana enfrenta, simultaneamente, desequilíbrios internos crescentes e perda de peso econômico no cenário global.
O PIB da China superou o PIB dos EUA em poder de paridade de compra
Quando o presidente Donald Trump fala em tornar os Estados Unidos uma grande nação novamente, provavelmente está se referindo à perda da liderança econômica global para a China. O gigante asiático já foi a maior economia do mundo antes de 1800, perdeu posição nos séculos XIX e XX e tem retomado a hegemonia agora no século XXI.
O gráfico abaixo, com dados do FMI, em poder de paridade de compra (ppp), mostra que o PIB dos EUA representava mais de 20% do PIB mundial nas duas últimas décadas do século XX, caiu para 16% em 2017, atingiu 15,5% em 2024 e deve ficar em 14,7% em 2029. No mesmo período, a China tinha uma participação no PIB mundial de 2,3% em 1980, deu um salto para 16,2% em 2017 (superando os EUA), chegou a 19% em 2024 e deve atingir 19,5% em 2029.
A China, com uma população mais de quatro vezes maior, supera os EUA em produto total, mas ainda está bem atrás em produto médio por habitante. O gráfico abaixo, também com dados do FMI (em ppp), mostra que, em 1980, a renda per capita dos EUA era de US$ 31,9 mil e da China de US$ 674 (47 vezes menor). Em 2024, a renda per capita dos EUA passou para US$ 68 mil e da China para 20 mil (3,4 vezes menor).
Portanto, a China já é a maior economia do mundo (em poder de paridade de compra), embora tenha uma renda per capita que representa cerca de um terço da renda média americana. Mesmo assim, com menor poder individual de compra, a China possui taxas de poupança e investimento bem mais altas do que as dos EUA. A taxa de poupança (das famílias, empresas e governo) é a parcela da renda nacional que não é consumida e é destinada à formação de capital. A taxa de investimento é a parcela do PIB destinada à formação bruta de capital fixo — infraestrutura, fábricas, máquinas, tecnologia, etc.
O gráfico abaixo, com dados do FMI, mostra que as taxas de poupança e investimento da China são muito superiores às taxas dos EUA e que a China é exportadora de poupança, enquanto os EUA dependem da poupança externa. No início do anos 1980, a taxas de poupança e investimento dos EUA estavam em torno de 23% do PIB e as taxas da China estavam em torno de 33% do PIB. Na atual década, as taxas americanas caíram para cerca de 20% do PIB e as taxas da China estão acima de 40% do PIB.
A economia americana é altamente orientada para o consumo interno, com grande participação do setor de serviços. Os EUA conseguem manter baixos níveis de poupança interna graças à capacidade de atrair poupança externa (investimento estrangeiro). Isto implica em déficit em conta corrente, pois os EUA importam mais capital do que exportam.
A China é uma economia altamente orientada para o investimento em capital físico, com forte apoio do Estado. Esse modelo foi essencial para sua rápida industrialização e modernização da infraestrutura. A China estuda reorientar seu modelo para depender menos de investimento e mais de consumo interno. Os EUA, embora inovadores, enfrentam riscos se continuarem com poupança doméstica muito baixa e déficits gêmeos altos. A China é altamente dependente das exportações e os EUA das importações.
Portanto, as duas maiores economias do mundo precisam ajustar os seus parâmetros macroeconômicos para uma convivência internacional mais equilibrada e menos conflituosa. Porém, o pacote de tarifas alfandegárias de Donald Trump não resolve estes desequilíbrios e ainda adiciona novos problemas no cenário internacional.
As inconsistências metodológicas e econômicas do tarifaço de Trump
A nova política comercial dos Estados Unidos provocou um abalo significativo na já delicada e desigual estrutura do comércio global. Com a imposição de tarifas que variam entre 10% e 50%, o governo americano reacende uma pauta que parecia superada: o protecionismo tarifário como instrumento geopolítico e econômico. Essa iniciativa pode representar um dos eventos mais disruptivos das últimas décadas no sistema multilateral de comércio, com efeitos que vão além da economia real.
Trump prometeu retaliar os países com altos superávits comerciais em relação aos Estados Unidos, implementando tarifas recíprocas — ou seja, impondo taxas de importação equivalentes às aplicadas por esses parceiros bilaterais. A proposta inicial era simples: se um país cobrasse 10% de tarifa sobre produtos norte-americanos, os EUA aplicariam a mesma alíquota em resposta. No entanto, na prática, não foi isso que aconteceu.
A fórmula divulgada pela Casa Branca foi apresentada como uma forma de calcular as tarifas com o objetivo de eliminar os déficits comerciais bilaterais entre os Estados Unidos e seus parceiros. Ela considera, além dos valores das importações (mi) e exportações (xi) americanas, a elasticidade das importações em relação aos preços (ε) e o grau de repasse das tarifas aos preços de importação (φ), conforme a seguinte expressão:
Mas, na verdade, os termos ε e φ se cancelavam, pois foram definidos pelo governo como 4 e 0,25, respectivamente. Assim, multiplicados, equivalem a 1 e não interferem no resultado. Portanto, a fórmula aparentemente complexa pode ser expressa pela simples divisão entre o déficit comercial e as importações dos EUA.
Por exemplo, os EUA importaram US$ 438,9 bilhões da China em 2024 e exportaram US$ 143,5 bilhões. Assim, conforme a fórmula: 145,5 – 438,9 = -295,4. E o resultado 295,4/438,9 = 0,673 ou 67%. Para definir a “tarifa recíproca”, a percentagem foi dividida por 2, como se fosse um desconto. Assim, a tarifa da China ficou definida em 33,5% e foi arredondada para 34%.
Na verdade, a China não cobra 67% de tarifa dos EUA e o governo Trump manipulou as estatísticas para justificar a criação de tarifas unilaterais. Fez uma ampla lista de países que estariam prejudicando os EUA. Mas nesta lista tem diversos resultados inusitados.
Todos os países que apresentam déficit no comércio com os EUA tiveram tarifas injustificáveis de 10%. É o caso do Brasil que compra mais dos EUA do que vende e mesmo assim recebeu uma tarifa punitiva e sem sentido do ponto de vista de corrigir o déficit comercial americano.
As Ilhas Heard e McDonald, território australiano desabitado, famoso por sua colônia de pinguins, foram inusitadamente incluídas na lista dos países com tarifas de 10%.
Países muito pobres e com baixa participação no comércio global e americano, como Lesoto e Madagascar, tiveram tarifas elevadíssimas. O nível de comércio destes dois países é insignificante e nada justifica a imposição de tarifas, muito menos de tarifas absurdamente altas.
Em 2024, Lesoto exportou para os EUA meros US$ 237,3 milhões e importou insignificantes US$ 2,8 milhões, com saldo comercial de US$ 234,5 milhões. Assim: 234,5/237,3 = 0,99 ou 99%. E a tarifa ficou em 49,5% que foi arredonda para 50%.
Madagascar exportou US$ 732,2 milhões e importou US$ 53,4 milhões, com saldo comercial de US$ 679,8 milhões. Assim, de acordo com a malfadada fórmula: 679,8/732,2 = 0,93 ou 93%. E a tarifa ficou em 46,5% que foi arredonda para 47%.
Evidentemente, estas tarifas impostas a Lesoto e Madagascar (assim como vários outros países muito pobres) não se justificam e apenas cria mais um vetor de injustiça no comércio internacional. Por outro lado, a Rússia, que invadiu a Ucrânia, não foi taxada (mas a Ucrânia sim).
O tarifaço de Trump também atingiu países aliados como Taiwan, que exportou US$ 116,3 bilhões para os EUA em 2024 e importou US$ 42,3 bilhões e obteve um saldo de US$ 73,9 bilhões. Aplicando a fórmula trumpista: 73,9/116,3 = 0,64 ou 64%. A “tarifa recíproca” ficou em 32%. Acontece que Taiwan é o maior produtor de semicondutores do mundo e se os seus chips forem taxados em 32%, todos os produtos eletrônicos dos EUA aumentarão de preços. Além do mais Taiwan pode retaliar vendendo os seus ultramodernos semicondutores para a principal nação rival, a China continental.
A fórmula esdrúxula foi construída como o instrumento para colocar em prática três objetivos econômicos do governo americano. O primeiro é reduzir o déficit comercial. O segundo é construir um muro tarifário para proteger a economia americana e, principalmente a indústria, visando aumentar a produção interna e substituir as importações de produtos manufaturados. O terceiro objetivo é obter receita fiscal para cobrir o déficit fiscal e reduzir ou estancar o crescimento da dívida pública.
Não resta dúvida de que os eleitores americanos desejam fortalecer a sua economia, reduzir os déficits gêmeos (comercial e fiscal) e controlar e reduzir a monstruosa dívida pública. Mas fazer isto com base no aumento das tarifas alfandegárias não dará certo atualmente, como não deu certo no passado. A famosa Smoot-Hawley Tariff Act de 1930 é um exemplo clássico de política econômica protecionista que teve efeitos desastrosos.
O governo Trump busca resolver os problemas econômicos dos Estados Unidos à custa das populações de outros países, inclusive de nações aliadas e de países extremamente pobres que necessitam de apoio internacional. Essa estratégia é conduzida de forma impositiva, unilateral e sem considerar perspectivas de benefícios mútuos. Paralelamente, promove o desmonte de políticas ambientais e enfraquece as agências responsáveis pela proteção do meio ambiente. Diante desse cenário, a única certeza é que as chances de sucesso dessas políticas são praticamente nulas.
Referência:
ALVES, JED. O governo Trump e a desordem do comércio internacional, # Colabora, 10/03/2025
https://projetocolabora.com.br/artigo/o-governo-trump-e-a-desordem-do-comercio-internacional/