Rose estava acostumada a receber todas as semanas turistas em Santo Antonio, na entrada do Parque Nacional Anavilhanas, no Amazonas. A principal renda da comunidade vem da produção de palitos para churrasco (feitos unicamente com madeira permitida por lei), mas as visitas turísticas e o apoio de um dos lodges da região sempre foram muito importantes.
A comunidade há anos recebe auxílio significativo do hotel Anavilhanas Jungle Lodge, que não apenas doa alimentos e insumos, como ajudou a construir a escola local, doou material escolar, painéis solares etc. Os turistas – muito frequentemente estrangeiros – sempre acabavam comprando itens de artesanato (enfeites, cuias, bijuterias etc) produzidos pela comunidade ao final da visita.
De uma hora para a outra, com a chegada da pandemia do novo coronavírus em março, os turistas simplesmente desapareceram da região. Com isso, muitas comunidades locais que dependiam deles se viram em grande parte desamparadas.
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Veja o que já enviamosO estudo Raio-X do Turismo Frente à Covid-19, realizado pela Rede Observatório de Turismo da Universidade do Amazonas em parceria com a Amazonastur, revelou que o turismo no estado do Amazonas registrou queda média de 72% no faturamento durante a pandemia. O caso é ainda mais grave no chamado turismo de selva, afetando não apenas 100% dos lodges e pousadas da floresta (que tiveram fechamento decretado por um semestre, cancelamento de reservas futuras, reembolso total de reservas já pagas etc) como comunidades inteiras que nos últimos anos fizeram do turismo uma de suas principais fontes de renda.
Iniciativas de suporte criadas emergencialmente
Com a obrigatoriedade de fechamento de lodges, pousadas e agências nos primeiros meses da pandemia, muitos empreendimentos da região demitiram boa parte de seus funcionários. E, mesmo agora, com as atividades turísticas regionais já em processo de reabertura desde o setembro, a situação ainda é bastante complicada. Afinal, o turismo na região sempre foi majoritariamente movimentado pelos turistas estrangeiros, que ainda não têm previsão para voltar.
[g1_quote author_name=”Simone Scorsato” author_description=”Brazilian Luxury Travel Association” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Manaus é um exemplo de como a imagem de um destino pode ser afetada devido à pandemia pela alta em número de contágios e mortes. E esse será o desafio do Brasil como destino turístico para o mundo. Temos que (re) trabalhar nossa imagem com muito esforço
[/g1_quote]Apesar das fronteiras brasileiras estarem já reabertas para estrangeiros há algum tempo, a imagem do Brasil lá fora segue extremamente prejudicada pela forma como o país lida com a pandemia desde o começo.
“Manaus é um exemplo de como a imagem de um destino pode ser afetada devido à pandemia pela alta em número de contágios e mortes. E esse será o desafio do Brasil como destino turístico para o mundo. Temos que (re) trabalhar nossa imagem com muito esforço”, diz Simone Scorsato, diretora da BLTA (Brazilian Luxury Travel Association), associação sem fins lucrativos que promove o turismo no Brasil com foco em autenticidade e sustentabilidade.
Para dar uma ideia das perdas, a RDS (Reserva de Desenvolvimento Sustentável) do Uatumã acredita que pousadas que vivem de pesca esportiva unicamente nesta região devem perder cerca de R$ 2 milhões apenas em cancelamentos este ano. Isso tudo sem contar, por exemplo, perdas em salários de funcionários dispensados, em outras atividades turísticas que deixaram de ser realizadas ou na não comercialização das peças das cooperativas de artesanato. Alguns negócios voltaram a receber turistas em setembro, período no qual se inicia a temporada de pesca esportiva, mas a recuperação tem sido ainda bem lenta.
Ações de apoio
Para tentar minimizar os prejuízos às comunidades, algumas iniciativas de suporte emergencial foram criadas ainda no começo da pandemia. A Fundação Amazonas Sustentável (FAS), por exemplo, criou a Aliança dos Povos Indígenas e Populações Tradicionais e Organizações Parceiras do Amazonas para o Enfrentamento do Coronavírus para tentar ajudar a população local que depende do turismo para sobreviver. Hoje são 69 parceiros no grupo, entre instituições públicas e privadas, que vêm se articulando para tentar arrecadar recursos sobretudo para compra de alimentos e realização de ações pontuais relacionadas à saúde.
Felizmente parte da hotelaria de selva da Amazônia brasileira também entende que o turismo sustentável envolve obrigatoriamente a assistência às comunidades locais. “Nossa principal comunidade é a dos funcionários dos nossos dois hotéis”, defende Guto Costa Filho, proprietário dos hotéis Anavilhanas Jungle Lodge, no Parque Nacional Anavilhanas, e Villa Amazônia, em Manaus. “O Anavilhanas é hoje o maior empregador privado do município de Novo Airão. Nestes meses de pandemia, dispensamos apenas os funcionários que ainda estavam em período de experiência, e cuidamos para garantir a todos rendimentos próximos aos níveis pré-pandemia, aumentando também a cesta de produtos oferecidos aos funcionários dos hotéis”, afirma.
[g1_quote author_name=”Guto Costa Filho” author_description=”Anavilhanas Jungle Lodge” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Do dia para noite tivemos que devolver todos os valores de reservas já pagas e pensar em como manter nossos 128 funcionários enquanto não saísse a proposta formal do governo para manutenção de empregos. Nesses quase oito meses de pandemia, assistimos ao nosso principal mercado desaparecer por completo
[/g1_quote]A ligação do Anavilhanas Jungle Lodge com as comunidades do entorno vem desde sua fase de construção. Localizado ao lado do município de Novo Airão, sempre foi inteiramente focado em sustentabilidade e já abriu suas portas com todos os alvarás legalmente aprovados. Mesmo em todos esses meses em que seus hotéis estiveram fechados e que todas suas reservas pré-pagas tiveram que ser reembolsadas, Guto faz questão de enfatizar que também continuaram assistindo as comunidades do entorno do lodge, sobretudo as comunidades do Santo Antonio e do Tiririca.
Doaram quinzenalmente cestas básicas aos moradores para que os mesmos não se vissem tentados ou forçados a procurar novas alternativas de renda (por muitas vezes ilegais). “Do dia para noite tivemos que devolver todos os valores de reservas já pagas e pensar em como manter nossos 128 funcionários enquanto não saísse a proposta formal do governo para manutenção de empregos. Nesses quase oito meses de pandemia, assistimos ao nosso principal mercado desaparecer por completo, com a demanda de estrangeiros indo a zero. Mas mantivemos também o projeto de construção da escola do Aracari, um novo modelo de escola comunitária pensado para acolher crianças de diversas idades em salas arejadas, claras e amplas, seguindo as técnicas construtivas locais”, diz.
Outro bom exemplo veio da Expedição Katerre (que promove itinerários em barco pela região) e do hotel Mirante do Gavião Amazon Lodge, que estão entre as empresas mantenedoras da Fundação Almerinda Malaquias, em Novo Airão. A Fundação possui um centro de educação multidisciplinar ambiental, de formação profissional e geração de renda que mantém o sustento de mais de 40 famílias através do trabalho artesanal sustentável a partir do reaproveitamento das sobras de madeiras nobres amazônicas descartadas pela indústria.
Antes da pandemia, 80% da renda oriunda da venda dos produtos da Fundação vinha do turismo no destino. Quando os turistas desapareceram por completo a partir de abril, a renda da fundação sumiu simultaneamente. A Expedição Katerre e o Mirante do Gavião (que trabalham dentro do modelo do turismo de base) criaram uma força-tarefa para desenvolver e colocar no ar rapidamente uma loja virtual (https://loja.fundacaoalmerindamalaquias.org/), para que os produtos da Fundação Almerinda Malaquias pudessem continuar sendo comercializados no país mesmo no novo cenário – e a iniciativa deu certo.
Foco no turista brasileiro
Pela primeira vez, o turismo amazônico em geral está focado no turista doméstico, esperando que tantas fronteiras internacionais ainda fechadas para os brasileiros incentivem mais as viagens pelo Brasil e, é claro, à região. Afinal, ainda não há previsão de quando o turista estrangeiro voltará a ter presença significativa na Amazônia brasileira.
O governo do Amazonas lançou no começo de outubro uma campanha digital com vídeos promocionais, como parte do programa de retomada do turismo local batizado de “Amazone-se“. A estratégia atual visa a divulgar o estado como destino seguro, “sem aglomeração”, para turistas brasileiros (e também servir de inspiração a turistas estrangeiros que pensem em visitar a região no pós-pandemia).
As comunidades locais estão atentas. As atividades turísticas nas comunidades ribeirinhas na região da Floresta Nacional (Flona)Tapajós estão sendo agora retomadas após um semestre inteiro de fechamento absoluto. “Os moradores querem os visitantes de volta, mas querem que a retomada seja feita de forma ordenada, sem riscos de contaminação. Alertamos para a necessidade de que todos os envolvidos na cadeia do turismo (operadores, agências, visitantes) respeitem e cumpram os protocolos”, diz Keissiane Maduro. Keissiane é indígena Borari e administradora de operações da Turismo Consciente, empresa que administra as embarcações Belle Amazon e Amazon Dolphin (que atuam na região dos rios Tapajós e Arapiuns) em parceria com a Cap Amazon.
Jean-Philipe Pérol, da Cap Amazon, acredita que o destino Amazônia é, sim, uma das grandes tendências do turismo, seguindo o aumento da procura por lugares preservados e isolados. Alguns hotéis de selva também acreditam no crescimento dessa demanda. “Os hóspedes já começaram a voltar lentamente e vemos uma retomada da demanda bastante promissora do público doméstico”, afirmou Guto Costa Filho, do Anavilhanas, pouco tempo antes do Amazonas voltar a apresentar alta dos casos, o que ocorreu em meados de outubro.