No meio dessa enxurrada de informação que passa nas nossas telas, minha atenção caiu sobre uma nota informando que havia sido sancionada pelo governo do Rio de Janeiro lei aprovada na Assembleia Legislativa considerando patrimônio de valor histórico e cultural a produção e a venda do acarajé no estado. A informação foi seguida por uma vontade incontrolável de comer acarajé; com esse pretexto perfeito, foi só reunir indicações de onde comer um ótimo acarajé na cidade, depois do fechamento dos restaurantes baianos Yemanjá e Siri Mole, que proporcionavam essa experiência gastronômica com a qualidade baiana.
Leu essa? Flávia Oliveira – Acarajé não é bagunça
Abro um breve parêntesis para lembrar que tive paixão à primeira mordida por acarajé na primeira vez que fui a Salvador em janeiro de 1981 – 32 horas de ônibus. Devo ter comida, pelo menos, um por dia nos 15 dias que estive na cidade; engordei cinco quilos, mas a culpa não foi só do acarajé, mas das comidas baianas em geral. Minha avó já fazia um ótimo vatapá, de receita própria, e havia provado moqueca no Oxalá, restaurante na Cinelândia, um dos muitos que meu pai me apresentou. Mas o acarajé foi novidade, que passei a repetir sempre que tive oportunidade.
Retorno a 2023 e, levado pelo pretexto e pela vontade, subo a Pedra do Sal, a caminho da Casa Omolokun, onde meus oráculos dos sabores apontam que encontra-se acarajé de ótima qualidade que este desavisado não conhecia. Foi a óbvia escolha – havia outras dicas – porque o quitute tem raízes africanas e nada mais adequado que aplacar esse desejo na Pequena África, área do Rio de Janeiro, que foi moradia de muitos escravizados e seus descentes; região vizinha ao porto onde foram desembarcados mais de um milhão de africanos escravizados no século XIX.
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Veja o que já enviamosA receita – de acordo com o Iphan, já que, desde 2005, o ofício das baianas de acarajé está inscrito no Livro dos Saberes como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil – tem origem no Golfo de Benim, na África Ocidental, e manda moer o feijão fradinho em pilão de pedra – que dá nome ao quitute: a pedra de acarajé. O bolinho, frito no azeite de dendê, está ligado ao culto dos orixás Xangô e Iansã; sua versão comercial inclui o recheio de vatapá, caruru e camarão – com pimenta, naturalmente. A palavra acarajé vem do iorubá: significa “comer bola de fogo” (akará = bola de fogo e jé = comer).
A Casa Omolokun reforça essas raízes: “é uma casa de cultura e valorização da religião de matriz africana, por meio da comida de dendê, cultura e arte”, na sua própria definição. As raízes africanas estão na decoração, nas exposições promovidas no espaço e, obviamente, no cardápio, onde o acarajé é tratado com a devida deferência – pode ser como entrada do menu combinado do almoço ou isolado a partir das 15h. A casa é compartilhada entre o restaurante, os drinques da Casa Odara, uma coquetelaria que pode ser encontrada também nos Quitutes da Luz, subindo o Morro da Conceição e na Livraria Belle Epoque, no Méier; uma filial da Casa da Árvore, livraria especializada em literatura brasileira e cultura carioca, com sede na Tijuca; e o salão de beleza de Thais Amaro.
Vivo uma tarde maravilhosa na Casa Omolokun – com acarajés, drinques e boa companhia – mas é meu dever informar que esse patrimônio de valor histórico e cultural do Rio de Janeiro pode ser encontrado nas barracas das baianas Naná, na Cobal do Humaitá, e Cátia, na Praia Vermelha – entre muitas outras espalhadas pela cidade. Também descobri que a baiana Isis Rangel, que pilotava a cozinha do Siri Mole, é a responsável pela fama do acarajé do Sabores de Gabriela, restaurante no Jardim Botânico. E o Yemanjá, que segue fazendo sucesso na orla de Salvador, está voltando ao Rio em versão delivery – que espero inclua no cardápio os maravilhosos mini-acarajés servidos por lá.
Alguns baianos – informam meus antigos colegas do *Correio – ficaram incomodados com o que consideraram uma apropriação de um patrimônio da Bahia. Mas a própria presidente da Associação das Baianas de Acarajé, Mingaus, Receptivos e Similares do Estado da Bahia (Abam), Rita Santos, elogiou a iniciativa do Rio. “Aqui no estado o ofício das baianas já é patrimônio desde 2012 e traz a receita do modo de fazer acarajé como patrimônio. Agora infelizmente o bolinho em si não é patrimônio. Gostaríamos muito que fosse”, disse Rita, que, aliás, é carioca, apesar de estar radicada na Bahia há décadas. A oficialização como patrimônio em 2012 na Bahia veio como reação a uma manobra de quituteiras evangélicas que pretendiam até batizar o acarajé de bolinho de cristo para tirar seu significado original de comida de santo.
Os baianos não precisam ficar incomodados: os mais famosos acarajés do Brasil – da Cira, da Dinha, da Regina, da Tânia, da Chica, do Gregório – estão em Salvador e garantem a tradição e a prioridade na história. Mas a herança africana não é forte somente na Bahia; também está em toda a parte no Rio de Janeiro. E suas histórias se misturam e se complementam. Reverenciamos Tia Ciata, verdadeira mãe do samba carioca, que abrigava em sua casa, na Pequena África, os bambas do começo do século passado – Donga, Sinhô, Heitor dos Prazeres, João da Baiana.
Tia Ciata era baiana de Santo Amaro, filha de Oxum, iniciada no Candomblé na Bahia, antes de se mudar para o Rio. E, como outras tias quituteiras, baianas e candomblecistas, armava seu tabuleiro para vender cocadas e outros doces (alguns historiadores falam também em acarajé), com os tradicionais vestidos e turbantes. Foram elas a inspiração para criação das alas das baianas nos primórdios das escolas de samba. Não há realmente razão para polêmica: vamos todos reverenciar e saborear o acarajé, como faço agora na Casa Omolokun, sabendo que é comida de santo, dos orixás, como faz questão de frisar a chef Leila Leão – carioca e candomblecista.