“Ya temi xoa, aê, êa! Ya temi xoa, aê, êa!” – na quadra ou na rua, os salgueirenses cantam com força o refrão de seu samba enredo para o Carnaval 2024. “Ya temi xoa” significa “eu ainda estou vivo”, em Yanomae, uma das seis línguas da família Yanomami. A 30 dias do Carnaval, o Salgueiro divulgou um pequeno glossário dos termos indígenas que aparecem no samba sobre o enredo “Hutukara”, que homenageia o povo Yanomami e traz um grito de alerta pela Amazônia.
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“Ya temi xoa, aê, êa! Ya temi xoa, aê, êa!”. Por coincidência (ou desígnios dos deuses da floresta), na mesma semana em que o Salgueiro explicava os detalhes de seu samba, o presidente Lula promoveu uma reunião com 12 ministros, além de representantes das Forças Armadas e da Polícia Federal, para reforçar as ações federais na Terra Indígena Yanomâmi, onde, um anos depois da operação deflagrada em janeiro de 2023 para expulsar garimpeiros e outros invasores, a situação ainda é dramática: o número de casos de malária aumentou 62% em relação a 2022, o número de mortes caiu 10% mas ainda foram registrados 308 óbitos em 2023; e calcula-se que ainda existam 8 mil garimpeiros no território (eram 20 mil no fim do Governo Bolsonaro).
“Ya temi xoa, aê, êa! Ya temi xoa, aê, êa!” O Salgueiro também, a um mês do Carnaval, as primeiras fotos do seu barracão – sempre guardados a sete chaves pelas escolas de samba, para surpreender público e jurados durante o desfile. Também por coincidência (ou também pelos desígnios dos deuses das florestas), apareceram, na mesma semana, fotos de crianças yanomâmis desnutridas, cenas chocantes como as vistas durante a operação realizada pelo Governo Lula em janeiro de 2023. As primeiras fotos divulgadas pelo Salgueiro dos preparativos para o desfile do Carnaval 2024 revelam imagens de saudáveis guerreiros indígenas, mas também de um Yanomâmi desnutrido.
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Veja o que já enviamosO glossário salgueirense traduz o enredo que chama-se simplesmente Hutukara – as escolas de samba costumam batizar seus enredos com nomes mais longos como o da atual campeã Imperatriz, “Com a sorte virada pra lua segundo o testamento da cigana Esmeralda”. “Hutukara” é a terra-floresta, define o Salgueiro. E segue explicando os termos da primeira estrofe: “Omama: o demiurgo. É o Deus da criação para os Yanomami”; “Xamã: guerreiros do mundo espiritual; eles fazem a conexão entre o mundo visível e o mundo invisível, atuando como escudos contra os poderes maléficos oriundos dos humanos e dos não-humanos que ameaçam a vida de suas comunidades”; “Yakoana: substância extraída das raspas de uma árvore que possui efeito alucinógeno; é utilizada nos rituais xamânicos”; Xapiris: são os espíritos de luz, defensores da terra-floresta; só são vistos pelos xamãs após o uso da yakoana”.
“É Hutukara! O chão de Omama / O breu e a chama, Deus da criação / Xamã no transe de yakoana / Evoca Xapiri, a missão… E assim vai o samba, com versos poderosos e críticos: “Falar de amor enquanto a mata chora / É luta sem flecha, da boca pra fora!” ou “Yoasi” que se julga: “família de bem”/ ouça agora a verdade que não lhe convém (“Yoasi. o irmão de Omama, é o responsável pela criação da morte e da escuridão”, explica o Salgueiro no glossário). Ou ainda: “Você quer me ouvir cantar em Yanomami pra postar no seu perfil / Entre aspas e negrito, o meu choro, o meu grito, nem a pau Brasil!”.
O samba também leva o verso “Somos parte de quem parte, feito Bruno e Dom”, homenagem ao indigenista Bruno Pereira e ao jornalista Dom Phillips, assassinados no Vale do Javari, na Floresta Amazônica. E fala em “Kopenawas pela terra” – explicando que “Kopenawa é o sobrenome da principal liderança Yanomami significa “marimbondo”; É melhor não mexer com marimbondo!”. O xamã Davi Kopenawa foi consultor do enredo e esteve na quadra do Salgueiro na escolha do samba para o Carnaval 2024. Após a reunião com Lula, uma comitiva de ministros esteve no território e foi recebida por Kopenawa. “O garimpo ilegal voltou com força. A impressão é que voltamos à estaca zero. É uma situação preocupante e triste: em algumas áreas, está até pior”, disse o xamã em entrevista.
As lideranças indígenas e seus aliados apontam a falta de coordenação das ações federais pelos avanços tímidos registrados na proteção dos Yanomamis neste primeiro ano do Governo Lula, após a devastação promovida sob Bolsonaro quando houve o avanço desenfreador do garimpo e a degradação do sistema de saúde com o desmonte político e administrativo do DSEI (Distrito Sanitário Especial Indígena) Yanomami. Na reunião com os ministros, foram prometidas “ações estruturantes” (e mais de R$ 1 bilhão em recursos) sob coordenação da Casa Civil.
O desfile do Salgueiro terá um setor inteiro apenas sobre a “Tragédia Yanomami”, mas a denúncia, que inclui o desmatamento e o aquecimento global, não exclui uma mensagem de resistência e esperança. “Napê, nossa luta é sobreviver! / Napê, não vamos nos render!”: Napê, informa o Salgueiro aos integrantes, é o “termo para designar todos os forasteiros, como o homem branco e os garimpeiros”. E o samba completa: “Meu Salgueiro é a flecha / Pelo povo da floresta / Pois a chance que nos resta / É um Brasil cocar!”.
“Ya temi xoa, aê, êa! Ya temi xoa, aê, êa!” – os Yanomamis ainda estão vivos e o enredo está mais do que oportuno. E “ainda” é a palavra que desafia o Brasil.