Passeio com jovens negros da Europa

“Ackee & Saltfish” é uma websérie de ficção também criada por Cecile Emeke

Cineasta britânica Cecile Emeke usa linguagem moderna e coloquial para dar voz a afrodescendentes em websérie

Por Claudia Sarmento | ODS 11 • Publicada em 28 de novembro de 2015 - 10:00 • Atualizada em 2 de dezembro de 2015 - 10:04

“Ackee & Saltfish” é uma websérie de ficção também criada por Cecile Emeke
A diretora Cecile Emeke, responsável pela websérie "Strolling"
A diretora Cecile Emeke, responsável pela websérie “Strolling”

“Eu sinto como se fôssemos uma parte invisível da sociedade”, diz a jovem Lydia, numa conversa sobre a representatividade de mulheres negras como ela. “Você fica sabendo sobre petições online a favor de mulheres negras, mas esses casos não aparecem no noticiário da TV, como se nós não tivéssemos importância”, acrescenta. Bekke, também jovem e negra, pensa do mesmo jeito: “É uma não-existência. Estamos aqui, mas acho que não somos notadas”. Lydia e Bekke são britânicas, moradoras de Londres. A primeira é de origem jamaicana, a segunda, nigeriana, mas foram criadas na Europa. O depoimento de ambas faz parte da websérie “Strolling”, na qual jovens negros passeiam por diferentes áreas de Londres falando sobre identidade, raça, gentrificação, sexismo, problemas sociais e políticos que os afligem numa cidade onde multiculturalismo não significa necessariamente integração.
A câmera e as conversas – informais, honestas e sem roteiro – são conduzidas pela cineasta e escritora Cecile Emeke, de 23 anos, que vem conseguindo registrar com profundidade vozes que nem todo mundo está interessado ou acostumado a ouvir. Cecile é uma representante dessa minoria. Britânica e neta de imigrantes jamaicanos, ela queria um espaço para falar da diáspora africana de forma ampla, sem se preocupar em traçar um retrato uniforme da juventude negra no coração da Europa. “Strolling” (“Passeando”, numa tradução livre em português) começou como um documentário de curta-metragem e se expandiu como websérie no YouTube. Há 13 episódios disponíveis. O sucesso já levou a cineasta a produzir spin-offs em Paris (“Flâner”), Amsterdã (“Wandelen”) e Milão (“Passeggiando”).

O formato dos vídeos, boa parte já com legenda em português, é o mesmo: jovens passeando e discursando sobre sua maneira de ver o mundo, sobre frustrações, racismo e desigualdades, mas também sobre conquistas, sonhos, cultura pop e cabelos crespos. Falam principalmente sobre a construção de uma identidade. Nas andanças, provocam reflexões sobre a questão racial na Europa, assim como abordam temas comuns a jovens do mundo inteiro que entendem o significado das palavras estigmatização e opressão. Embora os depoimentos não tenham nada a ver com religião ou extremismo, são autorretratos que ganham força num momento em que o continente mergulha num debate sobre imigração e integração de minorias, depois do horror do 13 de Novembro em Paris.
“Ser jovem na França neste momento é duro. É difícil achar emprego. Trabalho num restaurante fast-food, onde os empregados são, em sua maioria, negros e árabes”, diz Fanta, jovem francesa que protagoniza o segundo episódio da série “Flâner”. Cecile, ela própria uma mulher em busca de um lugar visível na sociedade, diz que sua intenção era fazer algo novo, que não cedesse a estereótipos em relação aos negros. A inspiração veio de conversas frequentes que ela tinha com amigos que têm histórias de vida semelhante à sua. Há homens entre os entrevistados, mas as mulheres são maioria. A ideia da diretora era ir além das vozes tradicionalmente masculinas que se destacam na luta pelos direitos dos negros. Sua bandeira principal é o feminismo. “Queria ajudar mulheres negras comuns e extraordinárias a ter uma voz. ‘Strolling’ é definitivamente e escancaradamente focado em histórias femininas”, escreveu Cecile no blog Afropunk, sobre cultura negra.

Em Paris, a série “Strolling” se chama “Flâner”

A inovação passa também pelo uso de canais não tradicionais de distribuição, ou seja, Cecile não se preocupou em vender a série para estúdios ou redes de TV. Financia os episódios através de crowdfunding e conquistou uma audiência fiel na web. Cada capítulo registra milhares de downloads e seu trabalho já foi elogiado por jornais como o “The New York Times” e o “Financial Times”. Ela comemora o impacto, mas diz não seguir uma estratégia definida para captação de audiência, o que poderia comprometer seu trabalho artístico.
– Tento fazer as coisas de forma orgânica, sem planejar como atrair o público. Acho que se houver honestidade no seu trabalho, a audiência tende a gravitar em torno desse conteúdo. Mas talvez eu esteja sendo apenas ingênua – afirmou ela para uma plateia formada principalmente por estudantes de Comunicação na London School of Economics and Political Science (Escola de Economia e Ciência Política de Londres, ou LSE), uma das mais prestigiadas universidades de estudos sociais do mundo, desmentindo a crença de que todo mundo que usa as redes como plataforma-chave está obcecado pelos algoritmos.
Dias depois, Cecile também falaria para os alunos da Universidade de Oxford. Como informou o “Financial Times”, uma palestra da diretora na Escola de Estudos Orientais e Africanos de Londres atraiu mais de mil pessoas. Sinal de que as grandes instituições de ensino britânicas escutaram a voz da moça e de que seu recado não está restrito a festivais indie ou de cultura negra.

“Ackee & Saltfish” é uma websérie de ficção também criada por Cecile Emeke

“Strolling” não é sua única forma de se expressar. A artista também é autora de outra websérie igualmente elogiada, a comédia “Ackee and Saltfish” (nome de um prato típico jamaicano), na qual duas amigas conversam sem freios sobre tudo e sobre nada, a começar por restaurantes caribenhos em Londres que não têm empregados negros. Os diálogos provocativos e engraçados entre Olivia (interpretada pela atriz Michelle Tiwo) e Rachel (Vanessa Babyrie) retratam o dia a dia das duas melhores amigas negras, moradoras do Leste da capital britânica, área que vem sendo drasticamente modificada pela gentrificação.
Há críticas à sociedade britânica, mas também episódios sem nenhuma mensagem política, como o capítulo em que Rachel e Olivia brigam porque a primeira, toda produzida para uma entrevista de emprego, pede que a amiga verifique se seu hálito está bom. Olívia se recusa e as duas travam uma conversa hilária sobre os limites da amizade. O diálogo poderia ser adaptado para um humorístico televisivo, mas é mais difícil imaginá-lo sendo protagonizado por duas atrizes negras.

 

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Descobri que posso dizer o que quero. Se houver alguma pressão para que você mude sua arte, você simplesmente diz não de maneira firme

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A websérie, veiculada no YouTube, ganhou destaque no canal BBC Trending, espaço multiplataforma para investigar o que vem sendo compartilhado nas redes sociais. Nem todo mundo gostou. As reações incluem comentários racistas e xenófobos. Cecile diz que não liga e que não pretende adaptar seu trabalho para que ele se encaixe em veículos tradicionais.
– Descobri que posso dizer o que quero. Se houver alguma pressão para que você mude sua arte, você simplesmente diz não de maneira firme – declara, decidida a brigar por sua autenticidade.
Cecile falou na LSE ao lado de outro representante de uma nova geração de artistas britânicos que usa as mídias sociais como principal plataforma de divulgação. O poeta Dean Atta ficou conhecido em 2012 depois de postar de seu smartphone um poema que escrevera em apenas 30 minutos sobre o caso Stephen Lawrence. O adolescente negro foi assassinado em 1993. Só 19 anos depois dois dos criminosos, brancos, foram condenados. Ficou provado que Lawrence foi esfaqueado num ponto de ônibus por causa da cor de sua pele. A polícia tentou esconder o crime racial.
Filho de mãe grega e pai jamaicano, Atta, criado em Londres, também entrou na lista das vozes mais influentes da comunidade LGBT no Reino Unido.
– Tenho a sorte de ter sido encorajado a me expressar desde muito pequeno e desde criança tenho um forte senso de justiça. Essa segurança se reflete no meu trabalho. Não tenho problemas para enfrentar o público e falar ao vivo, mas às vezes posto um texto online só para saber a reação das pessoas ou para atingir uma audiência mais abrangente. Instituições oficiais nem sempre estão abertas a alguém como eu, negro e gay, mas ao publicar meu textos online acabei sendo chamado por veículos tradicionais – contou Atta, que lançou coletânea e teve poemas voluntariamente transformados em vídeos na internet.

Claudia Sarmento

Jornalista, PhD em Mídia e Comunicação pela Universidade de Westminster e professora visitante do Departamento de Humanidades Digitais do King's College de Londres.

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