Assentada na violência desde sua origem, na invasão das caravelas portuguesas, a sociedade brasileira sempre dedicou crueldade e desprezo à parcela mais vulnerável da população. Incontáveis fatos históricos – o maior deles, a mais longeva escravidão do mundo – atestam a opção resoluta por massacrar o andar de baixo, para sedimentar a desigualdade extrema.
Leu essa? Vítimas da omissão do estado no Brasil
Também compõem o corolário de barbáries episódios quase secretos, omitidos dolosamente dos compêndios. Um deles ocorreu outro dia, na perspectiva histórica, em regiões abastadas e densamente povoadas da segunda maior metrópole do país. No meio do caminho – e ainda assim, pouca gente conhece: as remoções das favelas na Zona Sul do Rio.
Nos primeiros anos da ditadura militar, milhares de brasileiros pobres foram retirados à força de suas casas e carregados compulsoriamente para cantos remotos da cidade, numa criminosa ação do estado. Para viabilizar confessada higienização das áreas mais ricas, favelas como Parque Proletário da Gávea, da Macedo Sobrinho (no Humaitá), da Catacumba (na Lagoa), Ilha das Dragas (atual Clube dos Caiçaras, também na Lagoa) e Praia do Pinto (na confluência de Leblon e Lagoa) acabaram removidas do mapa – e da memória do Rio.
A censura da ditadura e a satisfeita cumplicidade da elite apagaram a barbaridade das remoções. A retirada em massa, sem cuidado nem critério, de famílias das suas casas (várias delas vivendo naqueles lugares havia algumas gerações), amputando-as de rotinas, relações, empregos e estruturas comunitárias, jaz no desterro dos episódios invisíveis da constrangedora história nacional. Mais um fato, entre tantos, do “país que não está no retrato”, como ensina o samba da Mangueira.
Barulhenta exceção que confirma a regra de silêncio é “Remoção”, espetacular documentário dirigido por Luiz Antônio Pilar e Anderson Quack, lançado em 2013, que volta agora aos cinemas de várias cidades. Em depoimentos que ao mesmo tempo emocionam e revoltam, várias vítimas narram a mudança forçada em todas as suas implicações e consequências. Amigos inseparáveis deixaram de se ver; famílias racharam; empregos desapareceram; rotinas se quebraram e jamais foram reconstituídas; amores se desmancharam; muito da vida perdeu o significado.
Na parte mais previsível da trama real, os removidos eram pretos, quase todos. Seguiram o destino dos antepassados escravizados e depois abandonados à própria sorte por um estado a serviço exclusivo da elite. Nas entrevistas, muitos demonstram incredulidade diante do acontecido com eles mesmos, seus parentes, amigos e vizinhos. Outros amargam raiva doída de todo aquele sofrimento causado pelo capricho dos ricos e a ganância da especulação imobiliária. Uns poucos riem do próprio infortúnio, que aceitam resignados.
Uma remoção em especial excede na crueldade: a da Praia do Pinto. Favela horizontal surgida nos anos 1930 – quando o Leblon era um areal distante da valorização desenfreada –, abrigava, em março de 1969, 20 mil pessoas, a maioria migrantes nordestinos, que ganhavam a vida como trabalhadores domésticos e da construção civil. Sob o jugo do recém-decretado AI-5 (fase mais violenta do arbítrio), chegou a ordem da transferência para conjuntos habitacionais distantes.
Receba as colunas de Aydano André Motta no seu e-mail
Veja o que já enviamosDois meses depois, na madrugada do domingo 11 de maio, um incêndio de causa jamais apurada destruiu mil barracos e deixou 9 mil desabrigados. No lugar da favela em cinzas, foram rapidamente erguidos prédios para a classe média-alta, conhecidos como Selva de Pedra, referência a uma famosa novela da TV Globo. Muitos moradores do paliteiro chique eram militares – materializando o lugar de privilégio (com todo o trocadilho) da casta verde-oliva.
O documentário ainda oferece acachapante “outro lado” da história – a principal algoz dos favelados. Secretária de Serviços Sociais do governo conservador de Carlos Lacerda na Guanabara, Sandra Cavalcanti (1925-2022) permite-se aterrorizante defesa das remoções, que dá vergonha – e revolta – de ouvir. “Eu salvei a Zona Sul”, reivindica ela, que cumpriu longa carreira política, invariavelmente em partidos de direita.
Cavalcanti participou da fundação do BNH (Banco Nacional de Habitação) e, como presidente do órgão, comandou a criação do Chisam (Coordenação de Habitação de Interesse Social da Área Metropolitana), que acelerou as remoções. A ex-deputada assume sem constrangimento o papel de vilã na trama real do filme. Jura que recebia, na época da entrevista, convites de famílias transferidas para aniversários e formaturas. (Nesse momento, uma epidemia de queixos caídos varre a plateia.)
Ainda este ano, “Remoção” estará disponível também no YouTube, no canal da Lapilar, produtora da obra. Assim, ficará facilitado o acesso a documento audiovisual precioso, da história de um momento secreto e lamentável do Rio.
Os paradeiros dos brasileiros das comunidades varridas foram cantos distantes da cidade, no historicamente abandonado subúrbio. Criados para receber os desterrados na truculência do estado, Cidade Alta (na Zona Norte), Vila Aliança, Cidade de Deus e Vila Kennedy (os três na Zona Oeste), a dezenas de quilômetros de distância, nasceram com a promessa de serem bairros planejados, com infraestrutura e cuidados sociais.
Mentira, claro. Os lugares degradaram-se rapidamente e hoje se afundam em problemas sociais que crescem em progressão geométrica, como falta de saneamento básico, ausência de atividade econômica e serviços de qualidade, transporte público caro e caótico, presença ostensiva de traficantes e milicianos, desprezo e preconceito de autoridades públicas.
São trágicos mausoléus produzidos por uma sociedade que não se envergonha da própria perversidade.