Eu tinha 12 ou 13 anos – um garoto, como tantos, apaixonado por futebol – quando meu pai me deu para ler ‘Copa do Mundo, 62’, de Mário Filho, autor que, obviamente, o menino conhecia de nome, o nome do estádio do Maracanã. Devorei o livro da primeira vez, reli dezenas – sem exagero – de vezes. É a história do bicampeonato da seleção brasileira: é a história contada por um jornalista, relatada com detalhes de quem tem intimidade com os fatos, escrita como se fosse um romance. Mas, de fato, é uma sequência brilhante de crônicas; de pequenos episódios que vão formando o retrato da seleção e sua trajetória até a conquista do Mundial.
São crônicas protagonizadas por Garrincha, Didi, Nilton Santos, Pelé; mas também há textos que têm como protagonistas o roupeiro Assis, o médico Hilton Gosling, o jornalista Sandro Moreyra – são crônicas que revelam a paixão do autor pelos seus personagens demasiadamente humanos. Não tenho como medir a influência de Mário Filho e de seu livro na minha própria trajetória, nas paixões pela escrita, pelo jornalismo, pelo esporte – não dá para medir, mas é impossível negar.

Mário Filho reaparece aqui neste #RioéRua, porque está sendo lançada a coleção Crônicas Eternas do Futebol, que pretende contar a história do futebol brasileiro através de textos de mestres da crônica esportiva desde o século passado. O primeiro volume é exatamente dedicado a Mário Filho. Como fui descobrindo ao ler, já um pouco mais velho, os livros com suas crônicas nos jornais que dirigiu (o Mundo Sportivo e o Jornal dos Sports) e também em O Globo e na Manchete Esportiva, Mário Filho foi o mais brilhante de todos os cronistas esportivas, em patamar acima até dos grandes João Saldanha e Armando Nogueira (também presentes na coleção) e de seu irmão Nelson Rodrigues.
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Veja o que já enviamosTalvez tenha sido também o mais identificado com esta cidade de São Sebastião. Em uma das pesquisas aqui, inclusive, uma inteligência artificial qualquer apontou que “Mário Filho foi um jornalista e cronista esportivo carioca”. Não, ele não nasceu aqui mas talvez a IA estivesse certa, porque o pernambucano Mário veio para o Rio de Janeiro com oito anos de idade e marcou a cidade onde viveu até a morte em 1966. O futebol carioca deve demais a Mário Filho que fundou o primeiro jornal brasileiro dedicado inteiramente aos esportes. O Mundo Sportivo priorizava o futebol, com uma linguagem popular, mas abria espaço também para o remo, o boxe, a natação e outras modalidades. Até corridas de automóveis eram divulgadas e incentivadas no jornal.
A bola caía na Lagoa. O cronometrista travava o cronômetro. E o tempo parava. O Flamengo queria que o cronômetro parasse, o Fluminense queria que corresse. Eram duas concepções de tempo que se chocavam, irreconciliáveis. Não é possível, o cronômetro não anda. E andava, bem que andava. Para o Flamengo, corria. A angústia fazia com que para o Fluminense o tempo parasse; e corresse, desembestado, para o Flamengo
Era um carioca de alma e de espírito, apaixonado por jornalismo e esporte, mas também pela noite e pelo samba. E, através de seu Mundo Sportivo, que já dava espaço para pautas carnavalescas, foi organizado o primeiro concurso de escolas de samba do Rio de Janeiro, em 1932 – vencido pela Mangueira, seguida pela Vai como Pode (que se tornaria a Portela). O Mundo Sportivo acabou, Mário Filho foi para O Globo, que passou a organizar o desfile competitivo até a organização ser assumida pelo governo do Distrito Federal.
Em 1936, Mário Filho, com ajuda de amigos, comprou o Jornal dos Sports que dirigiu por 30 anos, sem deixar de colaborar com outras publicações. No Jornal dos Sports, ele liderou a campanha para que o estádio para sediar a Copa do Mundo de 1950 fosse construído ali na região do Maracanã (na área do antigo hipódromo) – uma corrente, liderada por Carlos Lacerda, queria o estádio em Jacarepaguá. O jornal organizou também competições esportivas amadoras como os Jogos da Primavera – com várias modalidades femininas para crianças e adolescentes, com a participação de colégios e clubes – e os torneios de pelada no Aterro do Flamengo. Foi ainda o grande incentivador do relançamento, com sucesso, do Torneio Rio-São Paulo em 1950 – a competição havia sido disputada e concluída apenas uma vez, em 1933; em 1940, começou mas não terminou.
Fazia tudo isso sem parar de escrever. Seu livro O Negro no Futebol Brasileiro é considerado um clássico, estudado pela academia, nas cadeiras de história e sociologia. Mas é quase um livro de crônicas, guiado por histórias do futebol. Publicado em 1947, O Negro no Futebol Brasileiro começa assim: “Há quem ache que o futebol do passado é que era bom. De quando em quando a gente esbarra com um saudosista. Todos brancos, nenhum preto. Foi uma coisa que me intrigou a princípio. Por que o saudosista era sempre branco? O saudosista sempre branco, nunca preto, dava para desconfiar. E depois, a época de ouro, escolhida pelo saudosista, era uma época que se podia chamar de branca”.
Os acadêmicos falam do livro por sua “interpretação do Brasil” ou pela “construção da identidade nacional”, mas tudo isso passa pelas histórias, muitas em formato de crônica, sobre Fausto, Friedenreich, Leônidas, Domingos da Guia e também sobre o Bangu, primeiro clube a ter operários no time de futebol, inclusive o “center-forward” Francisco Carregal, “mulato, filho de pai português e mãe preta”, e Manuel Maia, “goalkeeper crioulo, filho de preto com preta”.
Os personagens das crônicas de Mário Filho iam dos grandes craques aos mais simples torcedores, passando por jogadores que a história teria esquecido não fosse pelo cronista. “Quando o jogo acabou, Arubinha ajoelhou-se, juntou as mãos, olhou para cima. Lá em cima estava o céu, devia estar Deus também. Arubinha não via o céu, não via Deus. Assim mesmo pediu, alto, bem alto, para que Deus escutasse: ‘Se há Deus no céu, o Vasco tem de passar doze anos sem ser campeão’ Uns dizem que Arubinha não se contentou com isso. Que um dia foi a São Januário e enterrou um sapo no campo do Vasco” – a crônica ‘O Sapo de Arubinha’, publicada na Manchete Esportiva, em 1957, revive a noite em que o Vasco goleou o Andarahy por 12 a 0, em São Januário, 20 anos antes. É épica, mas não pela goleada: pelo temporal, pela espera dos jogadores do Andarahy sob chuva, pelo acidente com os carros que levavam os jogadores do Vasco ao estádio; pelo drama dos derrotados. E pela praga do Arubinha (leiam a crônica para saber seu desfecho).
O que era e como era a crônica esportiva antes de Mário Filho? Simplesmente não era, simplesmente não havia. A crônica esportiva estava na pré-história, roía pedra nas cavernas. Havia, no seu texto, uma visão inesperada do futebol e do craque, um tratamento lírico, dramático e humorístico que ninguém usara antes
O cronista narrou assim a angústia daqueles minutos. “Era ainda o tempo do cronometrista. O juiz não mandava no tempo, quem mandava era o cronometrista. E lá estava o cronometrista. A bola caía na Lagoa. O cronometrista travava o cronômetro. E o tempo parava. O Flamengo queria que o cronômetro parasse, o Fluminense queria que corresse. Eram duas concepções de tempo que se chocavam, irreconciliáveis. Não é possível, o cronômetro não anda. E andava, bem que andava. Para o Flamengo, corria. A angústia fazia com que para o Fluminense o tempo parasse; e corresse, desembestado, para o Flamengo. Nem o Fluminense compreendia que ele custasse tanto a passar nem o Flamengo que ele corresse tanto”. Leiam o texto se quiserem saber dos detalhes do que se passou, em campo, nesses minutos – eu concluo como Mário Filho terminou sua crônica. “De repente, sem que ninguém mais esperasse, o cronometrista apitou e Juca abriu os braços e os levantou e fez assim, cruzando-os no ar. Era o fim. Ainda me lembro de um gemido que ouvi, de quem dá o último suspiro, olhei e vi uma senhora, já idosa, que escorregava da cadeira, já desanimada. Aquele gemido, aquele desmaio tanto podiam ser de alguém do Fluminense, como de alguém do Flamengo. E, sendo assim, eram o próprio Fla-Flu”.
Presto essa homenagem a Mário Filho aqui neste #RioéRua como carioca, jornalista, amante dos esportes, banguense e também como cronista esportivo, atividade pela qual me aventurei em O Dia, aqui no Rio, e no Correio*, em Salvador. Mas, após usar e abusar das palavras de Mário, encerro a minha crônica com as de Nelson Rodrigues. “O que era e como era a crônica esportiva antes de Mário Filho? Simplesmente não era, simplesmente não havia. A crônica esportiva estava na pré-história, roía pedra nas cavernas”, escreveu o dramaturgo para datar o nascimento da crônica esportiva na publicação de uma reportagem de meia-página do irmão com Marcos de Mendonça, goleiro do Fluminense e da seleção, ainda em A Manhã, jornal de Mário Rodrigues – Mário Filho não havia completado 20 anos. “Havia, no seu texto, uma visão inesperada do futebol e do craque, um tratamento lírico, dramático e humorístico que ninguém usara antes”, define Nelson. E ninguém conseguiu igualar depois, atrevo-me a acrescentar.