Carnaval 2023: notas cênicas dos desfiles das escolas de samba

Iluminação cênica na Beija-Flor: Pedro Américo, cinema e Isabel Filardis coroada no lugar de Dom Pedro na comissão de frente (Foto: Diego Mendes / Rio Carnaval)

Nova iluminação da Passarela do Rio, deu às escolas possibilidades de interferir diretamente na 'dramaturgia' de suas apresentações

Por Izak Dahora | ArtigoODS 11 • Publicada em 24 de fevereiro de 2023 - 14:01 • Atualizada em 25 de novembro de 2023 - 14:19

Iluminação cênica na Beija-Flor: Pedro Américo, cinema e Isabel Filardis coroada no lugar de Dom Pedro na comissão de frente (Foto: Diego Mendes / Rio Carnaval)

A série de desfiles deste ano se constituiu como um espetáculo de nível tão parelho entre as agremiações que meu objetivo aqui não é fazer um questionamento sobre vencedores e rebaixados, e sim me debruçar sobre aspectos cênicos que se destacaram, como a grande novidade visual dos desfiles: a nova iluminação da Passarela do Samba, que deu às escolas possibilidades de interferir diretamente na “dramaturgia” de seus desfiles através de uso individualizado da luz. Fizeram uso do expediente Beija-Flor de Nilópolis, Unidos da Tijuca, Salgueiro e Viradouro.

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A Beija-Flor foi a que usou o recurso por mais vezes e mais tempo durante sua apresentação, tanto na comissão de frente quanto em alegorias e em alas. A escola tijucana, primeira a lançar mão da luz, concentrou o recurso na comissão de frente, escolhendo um tom de azul que se fundia à cor do elemento alegórico representando o mar, do qual emergia uma Iemanjá interpretada pela atriz Juliana Alves, sedutoramente poderosa e preta – como deveria ser e estar no imaginário coletivo, uma vez que o candomblé é religião de matriz africana, negra. (É, pois, sempre digno de nota o papel pedagógico do carnaval das Escolas, até quando ele vem para desconstruir mitos e nos dizer o óbvio através de sua máquina imagética).

Tanto nas dependências do sambódromo como nas redes sociais houve fortes reações negativas à iluminação-espetáculo. Creio que talvez muitas dessas críticas se deram por conta da duração do expediente em algumas agremiações, mas o recurso em si não me parece negativo. Em um formato que se assumiu como algo para ser assistido pelo menos desde a década de 1960, e que apresenta assimilações do contexto cultural do espetáculo das classes médias – como a divisão da massa popular entre palco e plateia, além da entrada mediante pagamento de ingresso – a chegada a esse tipo de “aprimoramento” cênico parece um caminho natural.

Comissão assinada por Sergio Lobato na Unidos da Tijuca: primeira escola a usar nova iluminação da Passarela do Samba (Diego Mendes/Rio Carnaval)
Comissão assinada por Sergio Lobato na Unidos da Tijuca: primeira escola a usar nova iluminação da Passarela do Samba (Diego Mendes/Rio Carnaval)

Ainda assim, é preciso haver o bom senso de que a escola em questão é de samba, e que sua matriz cultural é popular e afro-brasileira, forjada (e mantida) ao ar livre, ligada a forças do acaso e da natureza, nascida de uma expressão de excluídos que, dentro de um sincretismo religioso, geraram o samba, expressão de resistência. Como diria Fernando Pamplona, “essa manifestação não é (propriamente) uma Bienal de arte”.

Há, portanto, um permanente desafio para as escolas: o equilíbrio entre modernidade e tradição, religiosidade e autonomia artística e os saberes de origens e características muito distintas. Durante muito tempo, ouvimos reclamações quanto a elementos da estrutura da passarela. A iluminação, por exemplo, estaria deficitária desde a inauguração do Sambódromo, em 1984, e apenas no ano passado recebeu seu aparato completo ao longo da pista. O que pode ser um problema é, de agora em diante, a iluminação virar mais um maneirismo, como o foram os telões de LED em alegorias a partir do início dos anos 2000 e os tripés alegóricos e os efeitos de ilusão de ótica a partir do desfile É segredo.

Aristóteles, em sua Poética, há mais de dois mil anos, escreveu que a alma da tragédia é a fábula, o enredo, o restante é “condimento do espetáculo”. O encenador estadunidense David Mamet, por sua vez, lança a pergunta: o (seu) cenário/figuino/luz é capaz de ser mais interessante do que o palco vazio e apenas preenchido pelo talento e humanidade dos atores?

Mamet nos convida a buscar uma dose consciente do uso de recursos, caso a caso. Mas os riscos existem para que os enfrentemos, e a história das Escolas mostra que elas costumam incorporar elementos e dialogar com novidades técnicas. Não fosse assim, jamais teríamos chegado ao formato atual, com características como a grande verticalização e agigantamento dos carros, graças às arquibancadas da Apoteose, e um raciocínio frontal ou linear do desfile, pensando na transmissão televisiva.

A respeito das coberturas midiáticas dos desfiles, hoje elemento fundamental na elaboração e compreensão do que se produz na passarela, chamou-me a atenção, mais uma vez, o nível cada vez mais cuidadoso de trabalhos de caracterização – vide a comissão de frente da Unidos da Tijuca, e as alas do último setor do desfile da Viradouro (“Festa do Divino”, “Palhaços da Folia de Reis” e “A Cavalhada”), a cargo do carnavalesco Tarcísio Zanon. Já na Imperatriz, vimos a riqueza narrativa e plástica a partir da literatura de cordel e de uma estética teatral mambembe (de bonecos mamulengos, sem a obviedade da estética brilhosa do carnaval e sem ultra-tecnologia), que esteve em outros desfiles assinados por Leandro Vieira. Na comissão de frente da escola de Ramos, coreografada por Marcelo Misalidis com o uso do varal de lençóis funcionando como as cortinas de um palco popular na comissão de frente).

Atmosfera mamulengueira na Imperatriz: lençóis como cortinas de um teatro (Foto: Diego Mendes/Rio Carnaval)

Registro também o primor de detalhamento das fantasias das baianas da Vila Isabel. Em uma cobertura que assimila cada vez mais dispositivos de ponta capazes de captarem para telas o trânsito e o transe carnavalesco com acuidade superior ao do próprio olho humano, o cuidado dos artistas com caracterização, indumentária e acabamentos torna-se decisivo. E o desfile de escola de samba torna-se cada vez mais um espetáculo não só teatral como cinemático e cinematográfico.

Paulo Barros reafirma talento cênico

Outro destaque ligado ao uso da luz nesse carnaval foi o conjunto alegórico de Paulo Barros e equipe, na Unidos de Vila Isabel. Em meu livro Arte total brasileira – a teatralidade do maior show da terra (2019), busco, ao final, uma reflexão amparada em artistas fazedores da festa quanto ao futuro dessa manifestação em crise econômica e estética – que talvez já tenham sido atenuadas nos últimos quatro anos. Um dos aspectos apontados como possível caminho de mudança é o tamanho das alegorias que, de tão grandes, sufocam o elemento humano do desfile há vários anos, como a performance de casais de mestres-salas e porta-bandeiras, encoberta por elementos alegóricos de comissões de frente. No desfile de 2023, Barros trouxe uma possível inflexão (a se confirmar ou não nos próximos anos) quanto a este aspecto.

O São Jorge do desfile da Vila Isabel: olhar da plateia atravessa alegoria (Foto: Diego Mendes/Rio Carnaval)

Tão ou mais importante que o tamanho das alegorias foi o desenho vazado das estruturas alegóricas trazidas pelo carnavalesco, o que possibilitou leitura e fruição mais plenas por parte da recepção, no interior de espaço cênico formado pela Sapucaí, uma passarela que tem a audiência lateralizada. Com a possibilidade de a visão (assim como a luz) atravessar a alegoria de um lado para o outro, a fruição do elemento escultórico ganha novas camadas perceptivas. O São Jorge sobre o dragão assinado por Barros e escultores da Vila simboliza com eloquência e beleza o que quero dizer. Barros também não saiu deste carnaval sem alguns de seus efeitos típicos; de seus momentos mais célebres. Um “clássico” de seu repertório foi a troca de roupa da porta-bandeira durante o desfile por seus guardiões. Antes disso, na comissão de frente, houve o ilusionismo do momento em que a mesa de Baco era repartida, e as ninfas, embriagadas pelo vinho, passavam a flutuar (talvez sem imperiosa necessidade ao enredo).

Na Viradouro, o vigor dramático da dança performada pela comissão de frente foi correspondente à catarse que uma personagem trágica como Rosa Maria demanda. Dança-teatro arrepiante, potente. Vimos efeitos e pirotecnia também no pesado e luxuoso elemento alegórico da comissão do Salgueiro e é importante frisar que alguns deles já não causam mais a mesma comoção de antes.

Homenagem a Natal no desfile da Portela: drones desenharam constelação de baluartes da escola em seu centenário (Foto: Diego Mendes/Rio Carnaval)

Vimos também os drones estamparem no céu infinito da Portela os nomes de eternos baluartes, como Dodô, Monarco e Natal. “Se eu for falar na Portela, hoje não vou terminar”. Apesar de seu acidentado desfile comemorativo ao centenário, tudo o que se colhe pela cultura do samba hoje tem em figuras como Paulo da Portela referências seminais, que plantaram respeitabilidade e dignidade às manifestações culturais negras, visão política do coletivismo negro, senso de criatividade e ousadia do carnaval, entre outras qualidades que emanaram de Paulo e baluartes da azul e branco e da Portela.

Se hoje temos espetáculos totalizantes realizados pelas escolas, resultando na integração entre enredo, samba e visualidade, por exemplo, a Portela tem nisso papel pioneiro (marco atribuído a seu enredo Teste ao samba, 1939). A escola foi responsável por inovações cênicas antes mesmo da emergência do Salgueiro, na década de 1960, como escola introdutora de valores estéticos de outras linguagens na festividade popular. A história e a tradição da Portela são tão grandes que dão a impressão, muitas vezes, de intimidar o seu presente.

Com tamanha densidade cultural e representatividade, a instituição escola de samba mantém-se vital para analisar e compreender o Brasil, chamando a atenção para a desigualdade em que fomos e somos forjados. Mais uma vez, remeto-me ao desfile da Beija-Flor, que nos últimos anos parece buscar um acerto de contas com seu passado, o qual na década de 1970 desenvolveu enredos ufanistas em plena ditadura militar.

Beija-Flor e a iluminação cênica na comissão de frente: escola de Nilópolis foi a que mais usou o novo recurso visual da Passarela do Samba (Foto: Diego Mendes / Rio Carnaval)

A Beija-Flor, com sua enorme densidade cultural e representatividade comunitária, desfilou. criticidade e iconoclastia, como na comissão de frente que recriou a tela do pintor Pedro Américo (Independência ou morte ou O grito do Ipiranga, de narrativa que romantiza nossa suposta emancipação política) através da mulher preta (representada pela atriz Isabel Fillardis) que, após derrubada de um militar em disputa com populares, toma seu lugar sobre um cavalo, afirmando-se como sujeito(a) da História. Em volta dela, uma espécie de lanterna mágica, mesclando outras imagens ligadas à independência dita “oficial” e as lutas afirmativas hoje. A comissão de Nilópolis pode(ria) ser estudada nas escolas.

Atribui-se ao filósofo Gilles Deleuze o seguinte pensamento: “O poder requer corpos tristes. O poder necessita da tristeza porque consegue dominá-los. A alegria é, portanto, resistência, porque ela não se rende. A alegria como potência de vida nos leva a lugares aonde a tristeza nunca nos levaria.” É este o poder político da estética alegre e irreverente do carnaval, porque, mesmo quando faz crítica, realiza-o por meio de corpos que ressignificam a ordem cotidiana, desafiam padrões morais e traduzem com arte e em corpo brincante ritmos e movimentos sonoros altamente sofisticados. Isso é político.

Margareth Menezes em carro alegórico da Mangueira: enredo sobre cortejos afro foi metalinguagem sobre desfiles (Foto: Diego Mendes/Rio Carnaval)

Destaco também a muito feliz proposta do enredo da Mangueira. Propor como tema os cortejos negros da Bahia (através do protagonismo e empoderamento negro feminino) é remeter-se, de modo direto e indireto, ao formato das próprias escolas de samba, à estrutura do desfile, do cortejo ou da processionalidade (de alas e alegorias). Sem contar a riqueza de sonoridades dos ritmos afro-brasileiros citados (do axé ao samba de roda), todos eles imbuídos da célula de movimento comum e essencial às formas presentificadas pelas corporeidades de matriz afro: a ginga, a síncopa (aquilo que quebra regularidades ou padrões de movimento e geram surpresa a partir da acentuação do tempo fraco).

O desfile da escola de samba, nosso drama popular que tem como protagonistas o negro, o mestiço e o pobre (privados historicamente do exercício de representar e de se ver representado nos nossos teatros oficiais) segue alcançando uma capacidade de mobilização que as artes cênicas não atingem por aqui nos dias fora do carnaval. Arte híbrida e fato social totalizante que é segue sendo, ao mesmo tempo, religiosidade, arte, pedagogia de massas, produto cultural (sim, por que não?) e política. Um organismo vivo, sempre em transformação e complexo.

*Este texto faz parte de série produzida em parceria pelo #Colabora – Jornalismo Sustentável e pela Revista Caju

Izak Dahora

Ator há 25 anos, atuando em teatro, cinema e TV. É autor do livro "Arte total brasileira – A teatralidade do 'Maior show da Terra' (Ed. Cândido). Doutorando em Artes (UERJ), mestre em Arte e Cultura Contemporânea (UERJ) e graduado em Artes Cênicas (UNIRIO). Professor nos cursos de Teatro, Cinema e Produção Audiovisual da Universidade Estácio de Sá e na pós-graduação em Literatura, Arte e Pensamento Contemporâneo (PUC-Rio).

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