Durante mais de um século, o produto mais vendido da região de King’s Cross, no centro de Londres, era batata. Os moradores não tinham dinheiro para comprar muita coisa além disso. Embora a área tenha servido como um dos palcos mais marcantes da Revolução Industrial, cercada por fábricas, rodovias, ferrovias e canais, sua população sempre viveu na pobreza. Após a Segunda Guerra Mundial, a decadência tomou conta do lugar. Junto com depósitos abandonados e carcaças de trens, vieram drogas, prostituição e violência.
– Era uma vizinhança onde você andava olhando para baixo. Era melhor não olhar ninguém nos olhos porque poderia ser perigoso – conta uma mulher de meia idade que viveu parte da vida em King’s Cross e hoje trabalha como guia.
O número de guias tem crescido exponencialmente porque há muita coisa a ser mostrada aos visitantes em King’s Cross. Não apenas turistas estrangeiros mas também moradores de Londres andam explorando a região para conhecer um dos maiores projetos de revitalização já tocados na Grã-Bretanha. A reconstrução envolve 67 acres (o equivalente a mais de 60 estádios de futebol), que incluem parques, praças, condomínios residenciais e comerciais, shoppings, hotéis, centros culturais, bares, restaurantes, escolas e uma universidade. Ninguém mais precisa se alimentar apenas de batatas ali.
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Veja o que já enviamosMuito já foi escrito sobre o Leste de Londres, ponto subdesenvolvido da capital britânica que se transformou num dos mais disputados endereços de galerias, designers e start-ups da Europa, principalmente após a repaginação impulsionada pela construção do parque olímpico de Stratford, sede dos Jogos de 2012. Agora as atenções se voltam para King’s Cross, uma área ainda mais central e cuja metamorfose pode ter um impacto ainda maior. É um empreendimento que vai durar mais de duas décadas, totalmente bancado pela iniciativa privada, mas com a promessa de que 40% da área de reconstrução abrigará espaços públicos. Sustentabilidade é o princípio básico do projeto, avaliado em 2,5 bilhões de libras (cerca de R$ 14 bi).
A restauração da estação internacional de St. Pancras sintetiza o que a reurbanização da região promete: o prédio de 1868, várias vezes ameaçado de demolição, foi recuperado, ampliado para abrigar os trens Eurostar, que ligam Londres a Paris, e conectado à estação vizinha, King’s Cross, por uma plataforma subterrânea. A construção foi totalmente modernizada sem perder as características da arquitetura vitoriana. O mesmo aconteceu com o antigo celeiro da área, que desde 2011 se transformou num complexo cultural onde está instalada a Central Saint Martins, a icônica faculdade de design e moda da Universidade das Artes de Londres, com cinco mil alunos. A praça em frente à universidade, a Granary Square, enfeitada com mil jatos d’água que hipnotizam as crianças de dia e espalham luzes coloridas à noite, virou o coração da nova King’s Cross. Eventos culturais acontecem ali o ano todo, mas o que realmente enche o lugar de vida é o vai-e-vem de quem estuda, trabalha ou mora na vizinhança e busca alguns momentos de sossego à beira do Regent’s Canal, com um café, livro ou gadget à mão. Decks servem de arquibancada para shows e cinema ao ar livre.
É um clima agradável de parque, que ganhou uma atração extra nos últimos meses a alguns metros dali: um lago artificial onde é possível nadar com hora marcada. O King’s Cross Pond é uma mistura de área de lazer e instalação artística, pensada para evidenciar o contraste entre a natureza e a selva urbana. Seu chão é coberto por plantas que purificam a água azul-turquesa, dispensando a utilização de produtos químicos. São surpreendentes 40 metros de comprimento e dez de largura cravados em meio a canteiros de obra.
Passear por esse pedaço meio esquecido de Londres ainda não é tão divertido para os turistas quanto conhecer as boêmias ruazinhas de bairros como Shoreditch, que sintetizam toda a modernidade da revitalização do Leste da cidade, com seus muros cobertos por grafites, seus brechós charmosos e seus cafés e bares frequentados por artistas e hipsters (a tribo de jovens urbanos que se vestem com roupas vintage e consomem cultura alternativa ). King’s Cross ainda não chegou lá e provavelmente não chegará. A proposta é outra. Mas embora ainda esteja tomado por tapumes e guindastes, o lugar merece a visita de quem tem interesse em ver de perto aquele momento meio mágico em que soluções urbanas começam a sair do papel e ganhar uma cara de vida real.
O plano de recuperar King’s Cross, adiado por diferentes crises econômicas, começou a se concretizar em 2007, com a reinauguração da St. Pancreas. A estação King’s Cross, construída no século 19 como um dos principais terminais de locomotivas a vapor do país, também foi restaurada, recebendo cerca de 150 mil pessoas por dia. O hotel cinco estrelas anexo, erguido originalmente para hospedar os barões da era vitoriana, ficou 76 anos abandonado, refletindo o ostracismo daquela região londrina. Em 2011, no entanto, os salões do St Pancras Midland Grand, rebatizado de Renaissance London, foram reabertos, mantendo o estilo gótico-vitoriano que encantou a alta sociedade inglesa em 1873. Na mesma área, o Great Northern Hotel, também erguido no século 19, foi recuperado e transformado num hotel butique.
Gentrificar sem remover
Ou seja, a proposta da reurbanização é recriar um espaço para poucos? Não, garantem os responsáveis pelo consórcio que investe na região. A principal preocupação foi criar um ambiente seguro e dinâmico para atrair empresas em busca de uma localização estratégica, de multinacionais a start-ups. Mas o plano também prevê uma combinação de imóveis de luxo com apartamentos subsidiados pelo governo. A comunidade está sendo ouvida, coisa que não aconteceu no auge da revolução industrial, quando milhares de pessoas tiveram que deixar suas casas para dar espaço a ferrovias, depósitos e gasômetros. Desta vez, não houve remoções. Além disso, moradores têm prioridade no preenchimento das vagas de emprego geradas pela reconstrução.
A industrialização que começou nos tempos vitorianos deixou toneladas de solo contaminado, que agora passam por um tratamento. Para proteger o meio ambiente, as dezenas de novas construções seguem regras rígidas de sustentabilidade, outra marca elogiada da revitalização de King’s Cross. Prédios inteligentes são aquecidos por uma rede de distribuição de água alimentada por uma usina local de cogeração de energia. Mais de 80% dos resíduos produzidos pela construção civil e pontos públicos estão sendo reciclados, segundo o site oficial do projeto. Os 20% restantes são lixo orgânico que passa por tratamento anaeróbico para geração de energia ou compostagem. Além disso, 20 prédios históricos estão sendo restaurados, para que a herança da região não seja simplesmente enterrada por construções contemporâneas.
Google, Jamie Oliver e Louis Vuitton
A fórmula está funcionando. A Havas, um dos maiores grupos de comunicação do planeta, a Louis Vuitton, a Universal Music e o jornal The Guardian mudaram o seu endereço para King’s Cross. Jamie Oliver, astro da culinária britânica e megaempresário, vai instalar ali a sua sede, e o Google está de mudança para a região – algo que deverá elevar às alturas a reputação da zona como novo pedaço descolado da capital britânica. Jardins suspensos e reflorestamento compõem o pacote de ações integradas para que as construções atinjam a categoria máxima do BREEAM (iniciais de Building Research Establishment Environmental Assessment Method), método de avaliação ambiental de edifícios usado no mundo todo. Carros ali são desnecessários e apenas um pequeno estacionamento está previsto. Há seis linhas de metrô servindo a região e percursos pequenos são feitos de bicicleta.
Mas um projeto dessa dimensão não poderia passar sem controvérsias. A iraquiana Zaha Hadid, celebridade mundial da arquitetura, classificou o design da reurbanização de “entediante”. Além disso, especialistas em planejamento temem que o lugar acabe se transformando num ponto que só pode ser frequentado por quem tem alto poder aquisitivo. Por enquanto, porém, o plano tem recebido muito mais elogios do que críticas. Rowan Moore, crítico de arquitetura do “The Observer”, definiu a renovação da região como “a mais substancial realização da ideia de que a melhor maneira de transformar uma área urbana e melhorar a vida dos moradores é deixar o desenvolvimento comercial assumir a liderança, em estreita colaboração com autoridades locais e comunidades”.
Ainda falta muito para o projeto terminar, mas os novos bulevares – antes terrenos degradados – já ganharam vida. Um café muito simpático, o Skip Garden, totalmente construído com material que sobrou das obras, é uma parada que vale a pena para quem está por ali apenas de passagem. Ele abriga uma horta comunitária, onde alunos das escolas públicas da redondeza aprendem a cultivar alimentos orgânicos. Só tem um problema: o café e a horta vão mudando de endereço à medida em que as obras avançam. Mas é essa a ideia mesmo. Mostrar que não é preciso um espaço sofisticadíssimo e imenso para reunir as pessoas em torno de uma boa mesa.
Parabéns pela excelente matéria sobre Kings Cross, renascimento e metamorfose do bairro londrino.
Parabéns Claudinha! Adoro os seus textos e já estava com saudades!
Fico feliz também pela abertura de mais um canal de comunição, com uma proposta bacana e gente competente. Parabéns à equipe toda. Abraços do Japão.