As sagradas escrituras da Universal

Evangélicos oram no templo de Salomão, da Igreja Universal, em São Paulo, em 2014 (Foto Adriana Spaca / Brazil Photo Press)

Há 30 anos, livro do bispo Macedo destilou preconceito contra umbanda e candomblé para tornar igreja conhecida

Por Aydano André Motta | ODS 10 • Publicada em 6 de outubro de 2016 - 11:48 • Atualizada em 20 de julho de 2021 - 15:59

Evangélicos oram no templo de Salomão, da Igreja Universal, em São Paulo, em 2014 (Foto Adriana Spaca / Brazil Photo Press)

Tema obrigatório nas eleições de 2016 no Rio de Janeiro, a Igreja Universal do Reino de Deus, do bispo licenciado Marcelo Crivella (prefeito do Rio de 2017 a 2020), ganhou suas escrituras sagradas quase 30 anos atrás – e com furiosas referências a religiões alheias. Lançado em 1987, “Orixás, caboclos e guias: deuses ou demônios?”, escrito pelo líder da igreja, Edir Macedo, estabelece os preceitos da Universal, num libelo de brutal preconceito contra as religiões afro-brasileiras.

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[g1_quote author_name=”Bispo Macedo” author_description=”No livro ‘Orixás, caboclos e guias: deuses ou demônios?'” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]

Os maiores médicos do Rio de Janeiro já chegaram à conclusão de que o espiritismo é a maior fábrica de loucos que existe

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O tratado intolerante é a semente do medo que, em temporada eleitoral, atormenta os devotos da umbanda, do candomblé e do espiritismo – e explica boa parte da rejeição a Crivella. O candidato até assinou, na campanha do primeiro turno a Prefeitura do Rio, carta-compromisso contra a discriminação religiosa (entre outros itens) e, em entrevistas, jura que a Universal não participará de seu eventual governo. Tudo insuficiente para exorcizar o fantasma gerado pelo livro de Macedo – que, aliás, segue à venda.

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Ninguém que se ocupa dos caminhos da fé por aqui ficou indiferente à obra. Comercializada em bancas de jornal a preços atraentes, transformou-se num best-seller instantâneo, vendendo impressionantes três milhões de exemplares. Muita gente, aliás, comprou achando que encontraria escritos sobre candomblé e umbanda – como a dedicatória “a todos os pais-de-santo e mães-de-santo da nossa pátria”, logo no início, insinua. Era bem o contrário.

“Os exus, os pretos-velhos, os espíritos das crianças, os caboclos ou os ‘santos’ são espíritos malignos sem corpo, ansiando por achar um meio para se expressarem nesse mundo, não podendo fazê-lo antes de possuírem um corpo”, escreve Macedo, à página 16, logo depois da imagem de um convite “para uma cerimônia de candomblé”, emoldurado por um tridente. “Existem casos em que, por força das circunstâncias, eles chegam a possuir animais para cumprir seus intentos perversos. (…) Na nossa igreja, temos centenas de pais-de-santo e mães-de-santo, que foram enganados por espíritos malignos durante anos a fio”.

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O ritual do descarrego tem semelhanças com os de umbanda. Ele usa códigos dos cultos de umbanda para demonizá-los

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Mais adiante, a aposta do autor na discriminação torna-se mais pesada. À página 25, a foto de uma pomba-gira incorporada ganha legenda pregando que a entidade “causa, em muitas mulheres, câncer de útero, de ovário, a frigidez sexual e outras doenças”. E assim continua por todas as 157 páginas da obra, em pretensas referências científicas (“Os maiores médicos do Rio de Janeiro já chegaram à conclusão de que o espiritismo é a maior fábrica de loucos que existe”, “Os demônios também se alojam no sistema nervoso do homem, daí poderem dominá-lo completamente”) e ameaças à vida (“… todas as pessoas que vivem querendo morrer são endemoninhadas”), até mergulhar em metáfora apocalíptica: “Essa religião, tão popular no Brasil, é uma fábrica de loucos e uma agência onde se tira o passaporte para a morte e uma viagem para o inferno”.

Argumentos tão patéticos podem parecer inofensivos a mentes serenas – mas tiveram efeito devastador em boa parte da população. “Orixás, caboclos e guias: deuses ou demônios?” serviu de plataforma à popularização da Universal, materializando o milagre da fama e da fortuna de seu inventor, Edir Macedo, e dos parceiros no comando da aventura – entre eles, o sobrinho, senador e postulante a prefeito do Rio, Marcelo Crivella.

O tratado de terror discriminatório serviu de alicerce a maior igreja neopentecostal do Brasil, atualmente espalhada por todos os continentes, que inspira seus ritos justamente nos protocolos comuns a terreiros da fé afro-brasileira. “O ritual do descarrego tem semelhanças com os de umbanda. Ele usa códigos dos cultos de umbanda para demonizá-los”, atesta o escritor e historiador Luiz Antonio Simas, especialista no assunto. “O que Macedo faz é ressignificar os rituais, adotando a prática ritualística no ambiente cristão. A própria expressão descarrego é do universo da umbanda”, observa.

De tão pesado, o livro teve a venda proibida no Brasil pela juíza Nair Cristina de Castro, da 4ª Vara da Justiça Federal da Bahia, em novembro de 2005. Na sentença, ela escreve que a obra “se mostra abusiva e atentatória ao direito fundamental, não apenas dos adeptos das religiões originárias da África e aqui absorvidas, culturalmente, como afro-brasileiras, mas da sociedade, no seu genérico prisma, que tem direito à convivência harmônica e fraterna, a despeito de toda a sua diversidade (de cores, raças, etnias e credos)”. Durou cerca de um ano, e o Tribunal Regional Federal da 1ª Região liberou a obra, argumentando com a liberdade de expressão.

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Os templos foram instalados nas periferias, onde o Estado é uma abstração. Os prédios da igreja são espaçosos e refrigerados, o oposto, em termos de conforto das casas dos fiéis

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Simas confirma que “Orixás, caboclos e guias” foi o “livro basilar” da Universal. “No lançamento, ninguém sabia quem era Edir Macedo”. O líder da igreja de Crivella, na realidade, baseou-se em algo bem mais antigo para compor suas escrituras. “No imaginário ocidental, os missionários europeus que chegaram à África no século 19, trabalharam com a ideia de bem e mal presente na dicotomia judaico-cristã. A ideia de Exu como demônio foi inventada naquele momento”, ensina o pesquisador. “A catequese jesuítica-católica defendia a adesão como forma de fugir do diabo”.

Templo da Igreja Universal do Reino de Deus em São Paulo
Templo da Igreja Universal do Reino de Deus em São Paulo, que custou US$ 297 milhões (Foto Miguel Schincariol / AFP / 2014)

A escritora Rosiane Rodrigues, também pesquisadora das religiões de matriz africana, enxerga, na releitura da Universal, referências ao Reavivamento da Rua Azusa, reunião pentecostal liderada pelo pregador afro-americano William Joseph Seymour, que durou de 1906 a 1915, em Los Angeles (EUA). O processo se desenvolveu em cultos de adoração e na mistura inter-racial. Caiu como uma bomba no establishment religioso de então – teólogos cristãos consideraram o comportamento escandaloso e pouco ortodoxo. Hoje, o avivamento é avaliado pelos historiadores como principal fator para a propagação do pentecostalismo no século 20.

“A Universal faz uma releitura desse processo, algo estratégico para o projeto de crescimento”, relata Rosiane. “Os templos foram instalados nas periferias, onde o Estado é uma abstração. Os prédios da igreja são espaçosos e refrigerados, o oposto, em termos de conforto das casas dos fiéis”. Ela conta que até a estrutura física sofre manipulação em nome dos rituais. “A temperatura do ar condicionado é regulada para que, no momento do exorcismo, o ambiente fique mais quente, faça mais calor. Para potencializar o êxtase religioso”.

Desde a catequese colonizadora nas Américas e na África, ninguém jamais havia sistematizado a demonização da umbanda e do candomblé até o best-seller de Edir Macedo. “Do ponto de vista sociológico, é interessante notar que, mesmo com a estratégia da Universal, as práticas mágico-religiosas não perderam o protagonismo nos cultos”, sustenta a pesquisadora. “A incorporação do Espírito Santo é exatamente igual à dos orixás no candomblé”.

Como um parasita da fé, a igreja ganhou o mundo, em especial a África, montada basicamente na mesma estratégia: o demônio etc. Outras denominações neopentecostais seguiram o mesmo caminho até que, em fevereiro de 2013, todas foram proscritas em Angola, ex-colônia portuguesa, por “propaganda enganosa” e “exploração das fragilidades do povo”. O motivo principal foi a morte de 16 pessoas, por esmagamento e asfixia, no culto “O dia do fim”, que reuniu 150 mil fiéis da Universal em Luanda, em 31 de dezembro de 2012. Em março de 2013, a igreja de Edir Macedo recebeu sozinha a autorização para voltar, criando um monopólio evangélico no país.

O tio de Crivella, aliás, não parou no primeiro best-seller. Escreveu dezenas de livros com temática espiritual, ultrapassando, no conjunto da obra, mais de dez milhões de exemplares vendidos. A trilogia autobiográfica “Nada a perder” conta a última temporada do bispo na cadeia (por lavagem de dinheiro, formação de quadrilha e evasão de divisas, em 2009) e anuncia outra etapa na trajetória da Universal: o poder da igreja dentro dos presídios. “É a era dos traficantes evangélicos”, explica Rosiane. “A estratégia dos pastores absolve o ser humano e atribui o crime ao demônio, que, no discurso deles, tem nome: Exu, o tranca rua etc”.

O novo capítulo instala o inferno na vida de pais e mães-de-santo das comunidades populares cariocas, perseguidas pelos bandidos convertidos e expulsas sumariamente. “Como um traficante do Lins disse a uma mãe-de-santo: ‘Você não pode mais ficar aqui, porque o morro é de Jesus e você é do diabo’”, relata a pesquisadora.

Tudo questão de mercado, conclui Luiz Antonio Simas. “A estratégia foi criada diante da percepção de que o rebanho estava receptivo. O fundamento teológico da salvação passava pela quebra de qualquer símbolo, pela ideia do mal, da satanização. Assim foi feito”, descreve ele.

Uma história que, como a literatura prova, não é de Deus.

Aydano André Motta

Niteroiense, Aydano é jornalista desde 1986. Especializou-se na cobertura de Cidade, em veículos como “Jornal do Brasil”, “O Dia”, “O Globo”, “Veja” e “Istoé”. Comentarista do canal SporTV. Conquistou o Prêmio Esso de Melhor Contribuição à Imprensa em 2012. Pesquisador de carnaval, é autor de “Maravilhosa e soberana – Histórias da Beija-Flor” e “Onze mulheres incríveis do carnaval carioca”, da coleção Cadernos de Samba (Verso Brasil). Escreveu o roteiro do documentário “Mulatas! Um tufão nos quadris”. E-mail: aydanoandre@gmail.com. Escrevam!

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