(Francisco Menezes*) – A poucos dias das eleições, passado, presente e futuro estão “postos à mesa”. Na imprensa, nas redes sociais, nas campanhas eleitorais e em conversas cotidianas, intensifica-se o olhar para o que piorou ou melhorou, para cada ação e fala de quem pleiteia cargos agora, mas também para o imaginário de um futuro melhor. Em meio ao extenso leque de temas urgentes, é hora de abrirmos os olhos para uma das mais graves mazelas em pauta: as diversas camadas da fome.
No país marcado pelo apagão de dados, a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), em esforço conjunto com organizações como a ActionAid, vem sedimentando, a partir de dados inéditos, a possibilidade de análise do presente e de um passado recente, mas que viabiliza a comparação com dados e medidas de períodos mais distantes da nossa história, como a saída do Mapa da Fome em 2014.
Hoje, são 33,1 milhões de brasileiras e brasileiros que não têm o que comer, em situação de insegurança alimentar grave. Se somarmos os três níveis de insegurança alimentar (leve, moderada e grave), o número chega a 125,2 milhões. Essa realidade aparece com intensidades variadas em cada estado do país, corroborando a direta relação entre insegurança alimentar e as diversas desigualdades sociais que o afeta. São as regiões Norte e Nordeste, por exemplo, que têm proporcionalmente as populações que mais passam fome. Não à toa, é nessas localidades onde estão concentradas as maiores proporções de pobreza e extrema pobreza e, portanto, são as mais impactadas pelo desmonte de políticas públicas vigente no Brasil desde 2016 e intensificado a partir de 2019.
Em números absolutos, a região mais populosa do país, o Sudeste, tem maior número de pessoas com fome, sendo 6,8 milhões de pessoas só no estado de São Paulo e 2,7 milhões no do Rio de Janeiro. É curioso – porém não surpreendente – que, por concentrarem centros urbanos e, teoricamente, mais possibilidades de emprego e geração renda, tais estados encarem números tão preocupantes.
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Veja o que já enviamosSeja onde estiver, no entanto, a fome atinge mais fortemente as populações negras, as mulheres e os lares com crianças de até 10 anos, evidenciando também a influência brutal do racismo estrutural, do patriarcado e do abandono à infância. São indicadores que reacendem em nossa memória cenas do cotidiano: extensas filas de pessoas à espera de restos de ossos; cartazes com pedidos de comida e dinheiro; o menino que liga para os bombeiros na esperança de um alimento; mulheres que se arriscam no uso de álcool e carvão para cozinhar pois não podem arcar com o gás; crianças dividindo ovo na escola; o trabalho da sociedade civil para fomentar doações e projetos de geração de renda. Um cenário que se dá enquanto o presidente da República veta aumento a recursos aprovado pelo Congresso para alimentação escolar e reforça o endividamento ao aprovar empréstimo consignado atrelado ao repasse de programa de transferência de renda. Está escancarado, no nosso dia a dia, o círculo vicioso da fome.
É importante destacar que os números e cenas atuais refletem ações de um passado recente, mas que extrapolam o período da pandemia da Covid-19. Nos últimos anos, as medidas dos governantes para o enfrentamento da crise econômica fomentaram o agravamento das desigualdades. Em meio a falhas graves, há o desmonte de todo um conjunto de programas e medidas implementados nas últimas duas décadas. Além da extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário e do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA), cortes gravíssimos de orçamento vêm corroendo o Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA), o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), o Programa Cisternas e o Programa de Restaurantes Populares.
O Auxílio Brasil, criado durante a pandemia sem articulação alguma entre estados e municípios, deixa de fora um contingente importante de pessoas, e quem tem acesso ao benefício vê o valor engolido pela inflação. Sem poder aquisitivo e suporte social do Estado, reduziu-se não só a quantidade, mas a qualidade da alimentação.
Para o futuro, independentemente dos nomes que venham a ocupar as cadeiras presidencial e do Congresso Nacional em 2023, a questão precisará ser vista como prioritária. Precisamos, com urgência, de um pacto nacional contra a fome, envolvendo as diferentes esferas e níveis de governo e a participação da sociedade para que se consiga resultados rápidos. A reconstrução de políticas públicas capazes de enfrentar a atual situação de fome e insegurança alimentar exigem medidas no campo macroeconômico, com resultados positivos para o emprego e renda, e medidas específicas relacionadas a políticas de segurança alimentar.
Podemos falar em investimento público em setores que criam postos de trabalho nas cidades, mas também em crédito para a agricultura familiar; lembrarmos da necessidade de retomar programas rapidamente eficazes, como a transferência de renda com os valores devidamente corrigidos e a elevação do per capita da alimentação escolar. Mas tais medidas de curto prazo e mesmo as mudanças estruturais necessárias só terão os recursos possíveis se governantes encararem de fato a reforma tributária progressiva e com taxação sobre a chamada super-riqueza, além da descontinuidade de destinos injustificáveis do dinheiro público, como o orçamento secreto.
Nada disso será alcançado sem a adesão política da sociedade, agora e daqui em diante, inclusive para pressionar as casas legislativas no reconhecimento e viabilização da prioridade no combate à fome. Nós, eleitores, devemos olhar para o futuro, sem esquecermos presente e passado, rumo à soberania alimentar.
*Francisco Menezes é economista e analista de Políticas da ActionAid Brasil