(Selma Glória*) – Novembro é mês em que celebramos a Consciência Negra, um marco na luta de um povo que desafia o tempo num brado de resistência e insubmissão em honra a sua herança ancestral por justiça e pelo fim das opressões que atravessam gerações. Em um país ainda abraçado à sua herança colonial e patriarcal, as consequências do machismo e do racismo estrutural ceifam vidas, sobretudo as das mulheres negras, que permanecem na base da pirâmide social mesmo com todo seu papel indispensável para avanço e desenvolvimento desse país. Esse histórico de opressão social, política e econômica tira das mulheres negras seu devido lugar de protagonistas em inúmeros aspectos e lhes oferece o que o país tem de pior, inclusive quando falamos de segurança alimentar e nutricional.
É sabido que a gestão desastrosa da pandemia da Covid-19 amplificou um quadro já antes tenebroso no Brasil, baseado em desigualdades plurais: raça, gênero, classe, ocupação de territórios, arranjos familiares. Aprofundou a fome sobretudo nos lares comandados por mulheres, dos quais 19,3% foram impactados pela grave privação no consumo de alimentos, segundo a Rede PENSSAN (2022). A pesquisa não cruzou dados de gênero e raça, mas pode-se ratificar materialidade do racismo quando 65% dos lares comandados por pessoas pretas ou pardas são afetados pela insegurança alimentar. Apesar de o estudo não apresentar, muito destes domicílios são assumidos por mães solo, o que Conceição Evaristo chama de “matriarcado da miséria”, a naturalização da pobreza que afeta sobremaneira as mulheres negras.
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Veja o que já enviamosAo olhar ainda para a informação de que 60% dos domicílios das áreas rurais convivem com algum grau de insegurança alimentar, além de que a fome esteve presente em 42% dos lares com restrição de acesso à água, muito se pode refletir também sobre a realidade das mulheres negras do semiárido brasileiro – região em que atuo junto ao Movimento de Organização Comunitária (MOC), que luta há 55 anos por um sertão justo e que conta com apoio de parceiros como ActionAid e Articulação do Semiárido (ASA) na mobilização local e de incidência política na proposição e acesso a direitos.
O fato é que tal realidade é fruto de decisões políticas, do abandono de medidas e programas que não só favoreciam de modo especial as mulheres negras, indígenas, quilombolas e de comunidades tradicionais, mas também avançavam em seu protagonismo na defesa da soberania alimentar. Tais mulheres carregam consigo uma herança ancestral que as torna guardiãs da biodiversidade, das águas, da vida. Estão à frente da produção de alimentos agroecológicos nos seus quintais produtivos, nas roças comunitárias, nas feiras agroecológicas. São elas também as responsáveis pelo prover da água para a família, um trabalho penoso e considerado uma atribuição feminina que atravessa gerações. Organizadas em associações ou em cooperativas, precisam do apoio das políticas públicas hoje desmontadas – como a Política de Aquisição de Alimentos (PAA), a Política Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), a Assistência Técnica, a Extensão Rural (ATER), o Programa de Cisternas – não só para botar comida de qualidade nas mesas de suas famílias e buscar autonomia econômica comercializando o excedente, mas para potencializar toda uma rede de economia solidária e de geração de saberes que só vêm a beneficiar brasileiros e brasileiras.
Refazer a caminhada e construir novos modos de viver e sobreviver no Semiárido são características pujantes das mulheres rurais que, de modo particular, tecem suas redes de afetividades e solidariedade ressignificando o existir em meio às opressões vividas. Por conseguinte, são as lideranças dos movimentos de mulheres ou organizações mistas que têm protagonizado lutas e intervenções políticas em seus territórios para reduzir as assimetrias de gênero e raça, na perspectiva de construir redes de resistência capazes de promover mudanças nas estruturas de poder na busca do exercício contínuo do aquilombamento em defesa do bem viver.
Agora é hora de olharmos para frente, e minha esperança é que seja traçado o caminho do diálogo para a retomada de políticas públicas. Reconhecer o papel das mulheres rurais negras na agroecologia é essencial para o enfrentamento das práticas antirracistas nessa construção de vida digna para todas e todos. É dessa perspectiva do deslocamento do silenciamento para o lugar de sujeitos políticos da nossa história que precisamos pautar a superação das mazelas sociais.
Parafraseando Carolina Maria de Jesus, que foi uma mulher pobre, negra, mãe solo: “Ah, comigo o mundo vai modificar-se. Não gosto do mundo como ele é”. Essa transformação é e precisa ser um sonho possível.
*Selma Glória é coordenadora do Programa de Gênero, Geração e Igualdade Racial- PGGIR no Movimento de Organização Comunitária (MOC), atuante no Semiárido da Bahia