Na sala adaptada para o trabalho voluntário de apoio escolar direcionado a estudantes de baixa renda, uma das alunas anuncia que terá que mudar de escola.
– As meninas da turma descobriram onde eu moro e agora estão me ameaçando porque a escola é de uma facção e o meu morro é de outra.
Pelos comentários em sala, percebo que só para mim a frase soa absurda. Para os alunos, já é rotina a pressão de facções criminosas sobre escolas públicas próximas a áreas dominadas pelo tráfico. E não há nada de estranho no fato de o controle sobre o território, nesse caso, ser exercido pelos próprios estudantes. E aí me dou conta de que absurda não é a frase, mas a realidade. Uma realidade que faz da violência um fator a mais de evasão escolar e obriga adolescentes que perdem a matrícula na escola perto de casa a estudar em “território inimigo”, vivendo com medo de serem descobertos.
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Veja o que já enviamosNa aula de português, o debate vira tema de redação. Os alunos, de 14 a 16 anos, falam sobre violência, problemas na escola e sobre sonhos – frequentemente condenados a não se realizarem. Apesar de as redações não citarem estatísticas oficiais sobre defasagens no aprendizado e índices de evasão escolar, elas estão presentes. Não em números, mas nas histórias de vida que assustam pela violência e, principalmente, pela naturalidade com que parecem ter sido incorporadas pela sociedade.
[g1_quote author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]O que não gosto na minha escola são os banheiros sujos, as janelas quebradas, as mesas e paredes pichadas
[/g1_quote]“Minha escola está caindo aos pedaços e tem muitos alunos que são brigões e fazem bagunça o tempo todo. É difícil estudar. Tem professora que já foi embora por causa disso.”
“Não entendo essa violência. Não posso ficar na escola só porque sou de um morro diferente. E se namoro um rapaz de outro morro, ele também não pode ir até minha casa porque senão é morto, eu apanho e cortam meu cabelo para aprender a não namorar inimigo. Mas não somos inimigos.”
“Meu sonho é ser professora, mas tem que estudar muito. Eu me esforço, mas a vida segue e o que tiver que acontecer, acontecerá”.
[g1_quote author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]É difícil estudar com tanta bagunça. A professora não consegue nem explicar a matéria, a gente só copia e pronto
[/g1_quote]Os relatos se multiplicam, em textos com dificuldades básicas de escrita, mas repletos de emoção, num retrato cruel de um sistema educacional que não dá conta de cumprir seu papel. Mais do que assegurar vagas na escola, é preciso oferecer ensino de qualidade, que crie condições reais para o aprendizado. O que se vê, hoje – com raras e conhecidas exceções – é uma educação que reproduz barreiras à mudança na estrutura social, que limita os sonhos de crianças e jovens de baixa renda.
Os números mostram que estamos ainda distantes do alvo. O sexto relatório “De Olho nas Metas”, do movimento “Todos Pela Educação”, divulgado em julho deste ano, revelou a defasagem no aprendizado no Brasil. No ensino médio, somente 27,2% dos estudantes conhecem a língua portuguesa de forma adequada ao período de estudo. Em matemática, o percentual cai para 9,3%. Apesar do crescimento no acesso à educação nas últimas décadas, 16,7% dos jovens de 15 a 17 anos estão fora da escola.
Incapaz de fazer frente às demandas atuais, o sistema educacional mostra-se insustentável. E não apenas em relação aos alunos de baixa renda. Estruturado no século XIX, com professores do século XX, o modelo vigente não dará conta de acompanhar a velocidade das mudanças da geração do século XXI. Nesse aspecto, as redes pública e privada vivem o mesmo dilema: o futuro chegou, mas as escolas continuam no século passado.
Os desafios que essa nova geração impõe são discutidos pelo filósofo francês Michel Serres no livro “A Polegarzinha”, cujo título é uma referência à habilidade de usar os polegares para se comunicar e pesquisar em aparelhos celulares. Esses jovens do século XXI viverão muito mais, a família em que nasceram não é mais a mesma. A medicina avançou e a relação com o corpo mudou. Conectados globalmente, não habitam mais o mesmo espaço. A diversidade é regra: convivem com várias culturas, línguas, religiões, comportamentos. Virtualmente, estão em vários lugares ao mesmo tempo. O uso da internet e a escrita de mensagens com os polegares não ativam as mesmas zonas corticais que o uso do livro e do caderno. A cabeça mudou. Não terão as mesmas profissões. O futuro ampliou-se.
Dentro desse contexto, em que o saber está disponível a todos, em telas por toda parte, e em que “tropeçamos no outro mesmo sem sair de casa”, Serres defende uma revolução equivalente na pedagogia, baseada numa nova demanda, num novo saber. Uma de suas propostas é misturar conhecimentos, derrubando muros de salas de aula que segmentam e isolam diferentes disciplinas, reflexos de um tempo em que ensinar era uma oferta, que não precisava se preocupar em ouvir a voz da demanda. Seus exemplos são da França, mas bem poderiam ser do Brasil: falta de interesse por livros, permanente burburinho nas salas de aula, bombardeio de informações, pouca reflexão. Também o diagnóstico é igualmente válido, quando diz que o estudante é mais que um ouvido a preencher, que tem o conhecimento ao alcance da mão e que o tédio vem do roubo do interesse, das tarefas mecânicas, da falta de propósito de um modelo de aprendizado que remete a um tempo que a Polegarzinha não reconhece.
No Brasil, a urgência de reavaliar o sistema educacional desde a base se amplia pela desigualdade na oferta de ensino: numa ponta, escolas (em sua maioria) particulares, que precisam fazer frente às mudanças do século XXI e, na outra, escolas (majoritariamente) públicas, cujos estudantes ainda estão distantes de usufruírem sequer da estrutura do século passado.
Os indicadores que serviram de base para a discussão do Fórum Nacional de Educação, em 2014, dão uma ideia do tamanho do desafio quando se fala em educação no Brasil: de uma população de cerca de 77 milhões de crianças e jovens, de zero a 24 anos, o número geral de matrículas na educação básica e superior é de 52 milhões. Ou seja, 25 milhões (ou 30%) de estudantes estão fora das salas de aula. Superada a evasão escolar, os que permanecem na escola enfrentam a dificuldade de aprendizagem: de cada quatro alunos, um está fora da série adequada à sua idade. A situação se agrava com o tempo. Somente cerca de 50% dos jovens de 15 a 17 anos estão matriculados no Ensino Médio, como esperado nessa idade. Na faixa de 18 a 24 anos, apenas 14% frequentam o ensino superior.
Um quadro insustentável para o país, estados e municípios, já que educação é fator de desenvolvimento, capaz de, por si só, promover melhorias duradouras. Historicamente, a taxa de escolaridade está diretamente relacionada a menores índices de mortalidade infantil e de gravidez precoce; a melhores condições de saúde e saneamento, e a uma maior expectativa de vida.
Um quadro insustentável para cada cidadão, bem instruído, que sabe, por experiência própria, o quanto educação é motor de mudança pessoal. E ainda assim se acomoda diante da desigualdade de oportunidades, aceita que educação seja tratada como privilégio e acha admissível que jovens no Ensino Médio mal compreendam o que leem.
Se a medida de sucesso de qualquer iniciativa na área de educação é o aluno, então estamos fracassando como sociedade. Fracassamos ao não conseguir transformar o potencial de cada criança em realidade, condenando uma geração a ter sonhos limitados, expectativa de renda mais baixa, a se conformar com menos, a viver com medo, mesmo dentro de uma escola.
Aos que duvidam de números, que conheçam de perto a realidade de crianças e jovens que se dispõem a acordar às 6 da manhã, todo sábado, para estudar um pouco mais. Crianças e jovens que querem ter chances iguais, embora a realidade insista no contrário. Que sonham, como qualquer integrante da geração Polegarzinha, compartilhar da educação do século XXI.