
(Gabriel de Faro e Tatiana Azzi)* – No Brasil, uma em cada 650 crianças nasce com fissura de lábio e/ou de palato (o céu da boca), também conhecida como lábio leporino. Especialistas ainda não bateram o martelo quanto às causas, mas há suspeitas de que fatores genéticos e ambientais atuem em associação para a má-formação. A pobreza ajuda a piorar o quadro, à medida em que a desnutrição das crianças inviabiliza a cirurgia de correção aos seis meses – idade recomendada para a intervenção cirúrgica quando a fissura é mais simples e atinge apenas os lábios, ou com um ano, quanto atinge o palato. É que a dificuldade de sucção dos bebês obriga a substituição precoce do leite materno pelo industrializado.
Há 19 anos, médicos e dentistas do Hospital Municipal Nossa Senhora do Loreto, na Ilha do Governador, na zona Norte do Rio, e voluntários do bairro decidiram promover uma campanha de arrecadação de leite. Batizaram a iniciativa de “Festa do Leite”. Assim nasceu o Projeto Súditos do Leite em 1998. Só que, rapidamente, os profissionais perceberam que não bastava associar a doação de leite com o tratamento gratuito às famílias dos bebês fissurados, ainda que o hospital fosse, e continue sendo, uma dupla referência, tanto em atendimentos quanto em cirurgias de crianças com este tipo de problema. Nove anos depois, o que começou como uma ação isolada, se transformou em uma ONG: a Saúde Criança Ilha – uma franquia social da Saúde Criança, criada pela médica Vera Cordeiro, em 1991.
De lá para cá, a campanha de combate à desnutrição já beneficiou cerca de 1.500 crianças fissuradas atendidas no hospital. Um total de 12 mil latas de leite são doadas anualmente e a ONG vem sobrevivendo com a apoio financeiros de colaboradores institucionais e de pessoas físicas. O maior apoiador é a Smile Train, uma organização internacional de caridade infantil que, no país, trabalha com uma rede de 34 parceiros, entre hospitais e instituições do Terceiro Setor, espalhados por 18 estados brasileiros.
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Veja o que já enviamosMetodologia social
Ao virar uma franquia social da Saúde Criança, o braço avançado da ONG na Ilha incorporou ao trabalho uma metodologia social baseada em cinco itens: saúde, educação, moradia, cidadania e geração de renda. As assistentes sociais visitam as casas dos pacientes, acompanham se os bebês estão indo às consultas médicas, dão assessoria à família para que ela possa recorrer a benefícios governamentais e oferecem oficinas de capacitação profissional. “As famílias chegam aqui fragilizadas”, conta Roberta Saldanha, assistente social do Saúde Criança Ilha, comentando que o drama das crianças fissuradas é agravado pela situação socioeconômica das famílias, em sua maioria com renda considerada abaixo da linha da pobreza. Muitas delas sequer têm casa para morar. “É uma parceria, a gente dá orientação, a mãe corre atrás e vamos conseguindo. É uma metodologia que realmente funciona”, resume.
Paixão transformadora
A dentista Fátima Brandão, presidente da Saúde Criança Ilha, começou a trabalhar na clínica odontológica do hospital em 1986. “Era desconfortável perceber que oferecíamos os recursos em termos de saúde e, ainda assim, a criança voltava desnutrida”, lembra. Não demorou para se apaixonar pela causa – por ironia do destino, seu segundo filho nasceu com o problema. César, já adulto, é voluntário da ONG criada pela mãe.
A fissura aparece de diversas formas, podendo atingir somente os lábios, outras vezes o lábio e o céu da boca (palato). Traz consequências médicas e sociais, como o bullying, a timidez, a dificuldade na fala e infecções. Fátima ressalta a importância de se falar sobre o assunto, conscientizando mais pessoas para tornar o tema de conhecimento geral e dar acesso ao tratamento a todos que necessitem.
(Gabriel de Faro é psicólogo fascinado pelas palavras e sua capacidade de criar realidades. Pós-graduado em marketing pela ESPM, hoje é coordenador de comunicação no Rio da ONG Atados. Tatiana Azzi é graduada em jornalismo e audiovisual, especializada em fotografia pelo Ateliê da Imagem. É sócia da Cabrita Produções.)