Coletânea coloca música de Cabo Verde no mapa

Capa e encarte de “Synthesize the soul – Astro-atlantic hypnotica from the Cape Verde islands 1973-1988”. Foto Divulgação

Imigração é o fio condutor do álbum “Synthesize the soul”, com gravações feitas na Europa e nos EUA, entre os anos 70 e 80

Por Carlos Albuquerque | ODS 9 • Publicada em 30 de junho de 2017 - 09:20 • Atualizada em 30 de junho de 2017 - 19:13

Capa e encarte de “Synthesize the soul – Astro-atlantic hypnotica from the Cape Verde islands 1973-1988”. Foto Divulgação
Capa e encarte de “Synthesize the soul – Astro-atlantic hypnotica from the Cape Verde islands 1973-1988”. Foto Divulgação
Capa e encarte de “Synthesize the soul – Astro-atlantic hypnotica from the Cape Verde islands 1973-1988”. Foto: Divulgação

Tudo soa curiosamente familiar em “Dança Dança T´Manche”, de Val Xalino. E não é só o nome da música e do autor. A estrutura, os timbres e, acima de tudo, o ritmo fazem a cintura sacudir com lembranças da lambada de Beto Barbosa, do carimbó de Dona Onete e da guitarrada de Felipe Cordeiro.  Mas o parentesco de Xalino é outro. Natural de Cabo Verde – país lusófono formado por dez ilhas, localizado na região central do Atlântico, a 500 quilômetros da costa africana -, ele migrou para a Suécia nos anos 80, onde desenvolveu sua carreira e gravou, em 87, esse que é o seu maior sucesso.

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Cabo Verde é um país de gente em movimento. Há mais locais morando fora de suas fronteiras do que em seu solo

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Xalino não navegou sozinho.  Assim como ele, diversos outros artistas de Cabo Verde também deixaram para trás as fronteiras do país em busca de oportunidades além-mar. Parte desse êxodo está retratado na preciosa coletânea “Synthesize the soul – Astro-atlantic hypnotica from the Cape Verde islands 1973-1988”, que mostra os frutos de tais travessias (entre eles, “Dança Dança T´Manche”). De quebra, o álbum – recém-lançado em vinil e CD pela gravadora independente Ostinato Records – toca num dos temas mais sensíveis da atualidade, a imigração, sem perder o rebolado jamais.

– Cabo Verde é um país de gente em movimento. Há mais locais morando fora de suas fronteiras do que em seu solo – conta o jornalista e pesquisador musical Vik Sohonie, dono da Ostinato e responsável pela coletânea. – No álbum, quis contar um pouco dessa história, usando a música como ilustração.

Paulino Vieira: um dos talentos locais que deixaram o país para tentar a sorte além-mar. Foto: Divulgação

“Descoberto” pelos portugueses em 1460, Cabo Verde foi um importante ponto comercial para a colônia (principalmente para o tráfego de escravos), um verdadeiro “centro de concentração e dispersão de homens, plantas e animais”, como descreve o site oficial do governo. Independente desde 1975 e hoje saudado como uma sólida democracia, o país sofreu durante muito tempo com a repressão e a política isolacionista do ditador português Antônio Salazar. Ritmos locais – como funaná e batuku – foram perseguidos, com seus bailes considerados subversivos e suas danças classificadas como lascivas, como conta Susan Hurley-Glowa, pesquisadora da Universidade do Texas, no farto libreto que acompanha o disco.

Grande parte do êxodo recente em Cabo Verde aconteceu durante o período que precedeu a independência e nos anos imediatamente seguintes. Foi quando músicos como Xalino, Jovino Santos , Paulino Vieira, Pedrinho e Tchiss Lopes, entre outros, traçaram rotas que os levaram a lugares como Lisboa, Paris, Rotterdam, Roma, Gotemburgo e Boston (EUA). No processo, trocaram instrumentos tradicionais (como o acordeão, típico do funaná) por sintetizadores e baterias eletrônicas.

Tchiss Lopes: “Queríamos reinventar nossa música e fazer com que o mundo soubesse mais sobre Cabo Verde”. Foto: Divulgação

Assimilaram também influências de funk, disco e reggae, que se somaram às raízes afro-latinas das ilhas, gerando um híbrido musical único e, ainda hoje, pouco conhecido no universo pop. Afinal, a única força de Cabo Verde a alcançar o mainstream foi a grandiosa cantora Cesária Evora (1941-2011), de sonoridade mais tradicional. “Queríamos não apenas reinventar nossa música, mas também fazer com que o mundo soubesse mais sobre Cabo Verde”, diz Lopes no encarte.

– É um cruzamento musical incrível, um som muito sofisticado e ao mesmo tempo muito contagiante, sensorial e de certa forma precursor da música eletrônica – diz Sohonie, que suou a camisa durante um ano para encontrar tais artistas e suas faixas para compor a coletânea. – Fiz contato com as comunidades de imigrantes de Cabo Verde em diversas cidades. Falei com pesquisadores e com a embaixada em Portugal.  Em um determinado momento, tive apenas o endereço de uma rua em um subúrbio em Paris. Mas no final tudo deu certo.

Deu bastante certo, como comprovam as críticas. “Synthesize the soul” é um exemplo de culturas se fundindo, em vez de colidindo. É uma celebração de artistas que deixaram seu país para trás, mas nunca se esqueceram dele”, disse a revista “Vice”. “Um trabalho de energia contagiante e que revela um modernismo vindo de Cabo Verde que até então era desconhecido”, cravou o site NPR.

Os elogios não desviam Sohonie de sua rota. Ele já tinha lançado uma coletânea de sons do Haiti (“Tanbou Toujou Lou: Meringue, Kompa Kreyol, Vodou Jazz & Electric Folklore from Haiti 1960 – 1981) e agora finaliza um novo trabalho de arqueologia musical, dessa vez com pérolas da Somália (“Sweet as broken dates – Lost Somali tapes from the horn of Africa”). Em “Synthesize the soul”, Sohonie sintetizou a sua própria alma errante, justamente num momento em que a imigração é tema de discussões (e ataques) na Europa e na América de Trump.

– Esse é um disco político. Não há como separar uma coisa da outra. Quase todas as músicas falam sobre a sensação de deslocamento. E isso é uma coisa com a qual me identifico bastante – diz ele, que nasceu na Índia e hoje mora nos EUA (Nova York), após passar por vários países. – Com esse disco, espero mudar um pouco a percepção negativa e os estereótipos que algumas pessoas têm sobre a imigração. Afinal, essa é, acima de tudo, uma história humana.

Carlos Albuquerque

Carlos Albuquerque (ou Calbuque) é jornalista de cultura, biólogo, DJ (daqueles que ainda usam vinil) e ocasional surfista de ondas ridiculamente pequenas. Escreve com a mão esquerda e Darwin é seu pastor.

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