Falta de infraestrutura atrasa a transição energética no Nordeste

Linhas de transmissão de energia no Nordeste: falta de infraestrutura atrasa a transição energética (Foto: Agência Brasil)

Região já é responsável pela produção de mais de 80% da energia eólica e solar do país, mas número de linhas de transmissão teve aumento de apenas 5%

Por Anderson Santana | Inclusão e DiversidadeODS 7 • Publicada em 22 de março de 2024 - 09:01 • Atualizada em 2 de abril de 2024 - 09:31

Linhas de transmissão de energia no Nordeste: falta de infraestrutura atrasa a transição energética (Foto: Agência Brasil)

Nos últimos anos, o Nordeste brasileiro tem se destacado como um potencial polo de geração de energias renováveis, especialmente eólica e solar. No entanto, um grave obstáculo ameaça impedir a plena realização desse potencial: a falta de infraestrutura de linhas de transmissão.  Apesar do crescimento significativo na produção de energia eólica e solar na região desde 2014, o aumento das linhas de transmissão não conseguiu acompanhar, com média de apenas 5% de crescimento

Nelson Tinoco, engenheiro com mais de 20 anos de experiência na geração de energia, explica que é importante analisar a situação em etapas. Ele recorda que o Nordeste era um grande importador de energia, ou seja, dependia da eletricidade gerada no Sudeste e Centro-Oeste, trazida por meio de linhas de transmissão. No entanto, com a instalação em larga escala de usinas eólicas e fotovoltaicas na região, houve uma transformação: o Nordeste passou de importador a exportador de energia. “As linhas de transmissões ficaram sobrecarregadas. As subestações estão sobrecarregadas e tem que ter investimento pesado, tanto em linha de transmissão como em subestação”, ressalta o engenheiro, hoje vice-presidente da Enerzee, empresa especializada em energia solar.

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Tinoco detalha que, por causa dos valores elevados, é necessário recorrer à iniciativa privada por meio de leilões, para que empresas façam as linhas de transmissão. “Não é nada barato, mas é factível que possa ser executado. Temos alguns problemas com relação à desapropriação de terras. Algumas passam por grandes centros e isso dificulta, mas tudo é possível de ser realizado”, destaca. Para o engenheiro, o empenho do governo brasileiro é essencial, inclusive para evitar que novos apagões sistemáticos ocorram, a exemplo de agosto do ano passado. “Tem que haver investimento. Existe um número enorme de projetos que não tem como evoluir, ou seja, executar usinas de geração, porque não tem linhas de transmissão, não tem subestações”, argumenta.

Ao mesmo tempo, de acordo com o Consórcio Nordeste, autarquia que reúne os governos estaduais da região com foco no desenvolvimento sustentável, há um desafio entre o prazo de construção das linhas de transmissão estabelecido pela Aneel (60 meses) e a exigência de conclusão da geração de energia renovável até 2026. Segundo a entidade, o descompasso gera incertezas para os investidores e coloca em risco a permanência dos investimentos na região.

Leilões do Governo preveem construção, operação e manutenção de mais 10 mil quilômetros de linhas de transmissão de energia (Foto: Marcelo Camargo / Agência Brasil)
Leilões do Governo preveem construção, operação e manutenção de mais 10 mil quilômetros de linhas de transmissão de energia (Foto: Marcelo Camargo / Agência Brasil)

Leilões para viabilizar infraestrutura

De acordo com o Governo Federal, dois leilões do Ministério de Minas e Energia (MME) e da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) vão gerar R$ 40 bilhões em investimentos para construção, operação e manutenção de linhas de transmissão de energia no ano passado. Essas estruturas passam pelos estados da Bahia, Espírito Santo, Minas Gerais, Pernambuco, Rio de Janeiro, São Paulo e Sergipe: estão previstas mais de 10 mil quilômetros de linhas de transmissão. De acordo com o MME, as subestações terão a capacidade de transformação de 400 megavolts-ampère (MVA) e cerca de 60 mil empregos diretos e indiretos serão criados com os investimentos previstos a partir desses leilões.

Para Raul Gil Boronat, CEO Brasil do Grupo Prysmian, empresa especializada na produção de cabos para aplicações em energia e telecomunicações, a ampliação de novas linhas de transmissão depende dos leilões realizados pelo governo federal. Boronat destaca que o Brasil está passando por um ciclo de leilões, com mais eventos em 2024. Esses leilões pretendem ampliar a oferta de energia até 2030 e atrair investimentos substanciais. O principal objetivo é viabilizar o transporte da energia renovável produzida no Norte e Nordeste, sendo essencial para impulsionar a transição energética do país, uma vez que essa energia precisa ser utilizada imediatamente. “Apesar deste cenário otimista, eu acredito que estamos muito preocupados com a quantidade e pouco preocupados com a qualidade das nossas linhas de transmissão e distribuição. Grandes apagões podem ser esporádicos, mas a realidade é que existem milhares de micro apagões que afetam o dia a dia das pessoas e das fábricas”, afirma.

De acordo com estudos recém-publicados pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE), presentes no documento do Plano Decenal de Expansão de Energia 2032 Transmissão de Energia, são cerca de R$ 50 bilhões de investimentos previstos com base nos estudos encomendados, que irão promover cerca de 15 mil km de novas linhas de transmissão e 16 novas subestações. As obras poderão ter início entre 2028 e 2029,  com base no calendário dos leilões de transmissão já programados. Segundo o estudo, “para que esses projetos possam contribuir para a segurança energética e para o aumento da competição na oferta de geração de energia, é primordial preparar o sistema de transmissão.”

A EPE também aponta que a capacidade de exportação total da Região Nordeste em termos de energia elétrica passa por um processo de expansão e aprimoramento. No início de 2022, o sistema já contava com uma capacidade de exportação de 11.000 megawatts. Até o final de 2027, está prevista a implementação de um sistema planejado que elevará a capacidade de exportação para 16.400  megawatts,  em vista de um avanço substancial em relação à infraestrutura existente. A projeção para o final de 2032 é atingir 25.000  megawatts. Além disso, está em andamento a implementação do Bipolo Nordeste 2, que permitirá um salto expressivo na capacidade exportadora da região, com 30.000  megawatts.

Usina de Energia Eólica em Icaraí, no Ceará: Nordeste concentra 90% dos parques eólicos do país (Foto: Ari Versiani / Divulgação)

Avanços em produção eólica e solar

Hoje, a Região Nordeste é responsável por produzir 82,3% de toda a solar e eólica do país. Há projetos espalhados por todos os estados. Bancos da região também estão criando linhas de crédito específicas para essa finalidade. O Banco do Nordeste, por exemplo, investiu mais de R$ 30 bilhões em projetos de energia renovável  nos últimos 5 anos, com mais de R$ 10 bilhões previstos para 2023. A instituição foca nos setores de energia eólica e solar, que representam mais de 70% dos créditos para energia renovável, por meio do Fundo Constitucional de Financiamento do Nordeste (FNE). Uma linha de crédito, a FNE Sol, financia projetos de mini e microgeração de energia. Nos últimos cinco anos, o BNB realizou mais de 24,7 mil operações de crédito totalizando mais de R$ 2 bilhões de investimento.

No setor de geração de energia eólica, de acordo com a Associação Brasileira de Energia Eólica (Abeeólica), o Nordeste é a região do país que concentra a maior capacidade de geração, com mais de 90% dos parques. “Quando falamos de energia eólica, falamos de infraestrutura. Por ter estruturas de grande porte, há desafios no transporte e instalação dos parques, mas a indústria faz isso há 20 anos e os estados e as empresas estão sempre dialogando e aprimorando os processos”, afirmou a entidade, em nota.

Ainda segundo a associação, há mil parques no país e a energia eólica possui 30 gigawatts (GW) de capacidade instalada, representando 14,3% da matriz elétrica brasileira, enquanto a fonte hidrelétrica é de 52%. Em 2024, a previsão de crescimento é de cerca de 3 gigawatts, o que significa um incremento de R$21 bilhões na economia brasileira, segundo a Abeeólica. Para finalizar, a associação ressalta que a cada R$ 1 real investido em eólica, é revertido R$ 2,9 no PIB do país.

Na energia solar, em janeiro de 2024, o Brasil alcançou um marco significativo na sua capacidade de energia solar fotovoltaica, ultrapassando a marca de 37 gigawatts (GW) de potência instalada, segundo dados da Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica (Absolar). Essa potência inclui tanto as usinas de grande porte quanto os sistemas de geração própria, como os instalados em telhados, fachadas e pequenos terrenos, representando 16,3% da matriz elétrica nacional.

De acordo com a entidade, desde 2012 a energia solar já atraiu mais de R$ 179,5 bilhões em investimentos para o Brasil, contribuindo com mais de R$ 50,3 bilhões em arrecadação para os cofres públicos e gerando aproximadamente 1,1 milhão de empregos. Além disso, essa fonte de energia ajudou a evitar a emissão de 45,2 milhões de toneladas de CO2 na geração de eletricidade. Ronaldo Koloszuk, presidente do Conselho de Administração da Absolar ,destacou que a energia solar é fundamental para impulsionar a “descarbonização do Brasil” e colocar o país como protagonista na transição para uma sociedade mais sustentável.

Em 2023, fontes renováveis – hidrelétricas e usinas solares e eólicas – foram responsáveis por 93,1% de toda a energia gerada no Brasil, como revelado pela CCEE (Câmara de Comercialização de Energia Elétrica).

Complexo Solar Luzia, na Paraíba: especialistas alertam para impactos socioeconômicos das construções de usinas de energia renovável (Foto: Neoenergia / Divulgação)

O exemplo da Paraíba e os desafios socioeconômicos

A expansão dos investimentos em projetos de geração de energia eólica e solar por todo o Nordeste cria outros desafios. Na Paraíba, por exemplo, empresas nacionais e estrangeiras já investem mais de 12,7 bilhões de reais em energia eólica e solar no estado, gerando mais de 9 mil postos de trabalho, conforme dados da Companhia de Desenvolvimento da Paraíba (CINEP).

Em 2023, o Grupo Neonergia iniciou as operações do Complexo Solar Luzia, com a capacidade instalada de 149,3 MWp, energia suficiente para abastecer mais de 100 mil residências. A Paraíba também tem 36 parques de energia eólica, com 301 aerogeradores. “Como o território paraibano está localizado na latitude 7 graus, portanto próximo da Linha do Equador, e tem uma extensa área territorial na região do semiárido, há uma alta incidência de radiação solar e por conseguinte um importante potencial solar e eólico”, explica o professor Walmeran José Trindade Júnior, doutor em engenharia elétrica e docente do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Paraíba (IFPB). 

O professor Euler Macedo, doutor em engenharia elétrica e diretor do Centro de Energias Alternativas e Renováveis (CEAR) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), pontua que a infraestrutura energética na Paraíba tem apresentado avanços significativos, especialmente no que diz respeito à energia eólica e solar. “A região tem um grande potencial para a geração de energia a partir dessas fontes renováveis, o que tem impulsionado investimentos e o crescimento da capacidade instalada de parques eólicos e usinas solares”, acrescenta.

Segundo Macedo, no campo da energia eólica, a Paraíba tem se destacado como um dos principais estados nordestinos na produção desse tipo de energia, com a implementação de parques eólicos em diversas regiões. “Essa expansão tem contribuído para a diversificação da matriz energética e para a redução da dependência de fontes não renováveis”, afirma, lembrando dos avanços também nos projetos de geração distribuída e usinas de energia solar de  grande porte. “A incidência solar na região favorece o aproveitamento dessa fonte limpa e sustentável, com grandes empreendimentos como os da empresa Rio Alto nas cidades de Coremas e Santa Luzia”, explica.

Trindade Júnior complementa explicando que a tecnologia fotovoltaica utilizada no modelo da geração distribuída, associada ao sistema de compensação de energia elétrica, tem se mostrado de uma viabilidade econômica muito interessante. “Isso possibilita que pessoas de praticamente todas as faixas de renda possam ter acesso. O que nos falta, no meu entender, é que essa boa nova seja melhor divulgada e que campanhas de esclarecimento sobre essa temática sejam desenvolvidas e a população passe a saber dos procedimentos técnicos e financeiros para acessar a tecnologia fotovoltaica no modelo da geração distribuída. É neste modelo que vejo o caminho do Bem Viver energético”, afirma.

O professor do IFPB  destaca que o principal desafio é encontrar o melhor equilíbrio entre o aproveitamento desse potencial energético respeitando os limites dos ecossistemas e os limites sociais das comunidades que vivem nesse território, “que favoreça a um desenvolvimento socialmente justo, economicamente viável e ambientalmente equilibrado”. Trindade Júnior frisa que há comunidades afetadas por poluição sonora e transtornos ambientais com eólicas e que isso é um sintoma de que o equilíbrio ainda não foi alcançado.

Para Euler Macedo, é necessária a modernização da infraestrutura de transmissão e distribuição para integrar de forma eficiente a energia gerada por fontes renováveis, a questão da intermitência dessas fontes e a busca por soluções de armazenamento de energia. “Além disso, é importante considerar a questão da sustentabilidade e do impacto ambiental no planejamento e expansão das energias renováveis. Em resumo, a Paraíba tem avançado significativamente na incorporação de energia eólica e solar em sua matriz energética, mas ainda necessita de investimentos no que tange especialmente à integração, armazenamento e sustentabilidade dessas fontes”, conclui o diretor do Cear.

 

Anderson Santana

Natural do Sertão do Pajeú, é jornalista, formado pela Universidade Federal da Paraíba, e mestre em comunicação e sociedade pela Universidade Federal do Tocantins. Pesquisador independente, atua em comunidades rurais por meio do projeto voluntário Ineruc (Iniciativa Nordeste Rural Conectado).

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