A Ilha do Combu, em Belém, é uma das principais atrações da capital paraense. Tem restaurantes com a exuberante gastronomia regional, vista panorâmica para o Centro da cidade de 1,5 milhão de habitantes, chocolates premiados e uma linda galeria de arte a céu aberto. Desenhos coloridos enfeitam as fachadas das casas sobre palafitas dos ribeirinhos contrastando com os muitos tons de verde da floresta. As dezenas de murais não estão ali apenas como legado artístico para encantar visitantes que passeiam em pequenos barcos pelos igarapés e furos. Os grafites, feitos por artistas de todo o país, chamam a atenção para uma situação grave: a falta de investimento em infraestrutura para água potável e saneamento.
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Pode parecer incongruência falar de insegurança hídrica em uma ilha na caudalosa foz do Guamá, rio que contorna Belém e desemboca na Baía de Guajará. Mas esta é a realidade do Combu, distrito a apenas 15 minutos de barco do Centro da capital. Em 2015, o artista plástico Sebá Tapajós (filho do consagrado violonista e compositor Sebastião Tapajós) criou de forma independente o projeto Street River Amazônia. Sem fins lucrativos, a iniciativa leva artistas de Belém e de outras cidades do país para pintar as fachadas à beira-rio e promover ações socioambientais que beneficiem os cerca de 1.500 habitantes da ilha. Suspenso em 2020 e 2021, por causa da pandemia, o projeto voltou em 2022 e foi realizado este mês.
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Veja o que já enviamosNo primeiro ano, Sebá pintou ele mesmo cinco casas. Este ano a galeria fluvial na entrada da Floresta Amazônica teve apoio do Banco do Brasil Seguros e intervenções artísticas em 15 casas. Os novos murais se somaram aos 37 das edições anteriores do evento. Todas as pinturas, com motivos figurativos ou abstratos, são feitas com tintas antimofo. Afinal, estamos falando de moradias à beira-rio. As casas participantes recebem benfeitorias como cisternas para armazenar as chuvas constantes do bioma amazônico e filtros para tratamento de água. São organizadas também oficinas de arte para os ribeirinhos e para professores e alunos da rede pública local, com participação dos artistas convidados.
De 2015 a 2019, foram instalados 18 filtros de água, 12 cisternas de 240 litros cada e placas fotovoltaicas em duas escolas. A edição 2022 prevê outros 12 filtros de água e sistema de energia renovável em mais uma escola. No Combu, a energia está diretamente relacionada à segurança hídrica, já que em muitos casos é preciso bombear a água do rio para abastecer as caixas usadas como reservatórios. A água armazenada atrás da captação direta é utilizada na limpeza da casa, geralmente depois da adição de uma substância química como hipoclorito de sódio (água sanitária). O Street River Amazônia já contemplou com as benfeitorias cerca de 200 famílias, que têm como principal fonte de renda o extrativismo vegetal (cacau, cupuaçu, palmito, açaí) e a pesca. Sem água potável e saneamento básico o turismo não tem como se desenvolver de maneira sustentável para se tornar uma renda significativa.
Inclusão e diversidade pautam a seleção dos artistas convidados. Este ano, com curadoria do fotógrafo paulista William Baglione, o Street River Amazônia reuniu representantes de estados tão diferentes como Acre, Amazonas, Pará, Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul. Cada artista escolhido tem um foco diferente, afinal, representatividade importa. Já houve ano, por exemplo, em que todas as artistas eram mulheres. A lista de 2022 tem, entre outros, Auá Mendes, do povo Mura, que usa sua obra para falar do corpo marginalizado preto, indígena e transvestigênere, e Kadois, de Santarém, que valoriza temas amazônicos como fauna e flora.
A fábrica de chocolate da Ilha do Combu
O Combu faz parte de uma Área de Proteção Ambiental (APA) que reúne 39 ilhas, com floresta preservada, furos e igarapés, e pode ser visitado o ano inteiro. Os barcos são facilmente contratados no Centro de Belém. Há outras atrações além da galeria fluvial, como a fábrica de chocolate da Dona Nema. O cacau nativo do Combu ganhou fama quando entrou no menu do restaurante Remanso do Bosque que, comandado pelo chef paraense Thiago Castanho, já esteve entre os 50 melhores da América Latina no ranking do World’s 50 Best Restaurants. É possível visitar uma parte da plantação da Dona Nema e fazer uma trilha pela mata nativa. Na entrada da propriedade há uma lojinha à beira-rio com produtos locais, como barras de 100% cacau orgânico e bombons de chocolate com bacuri, castanha, cupuaçu.
Entre os restaurantes da ilha, o mais conhecido é o Saldosa Maloca (Saldosa com L mesmo), que serve pescados da região na entrada do igarapé que leva à Dona Nema. O nome da casa é homenagem à canção do compositor paulista Adoniran Barbosa. Já a grafia é só mesmo um erro de quem fez a primeira placa com o nome do lugar. Peça um Saldoso Cacau, com cachaça e cacau nativo, servido dentro do próprio fruto colhido na ilha, e faça um brinde para desejar que chegue logo o dia em que a segurança hídrica seja um direito de todos.