Receba nossas notícias por e-mail. É de graça.

“Sexo casual beneficia os homens”: remando contra a maré do conservadorismo

Mentalidade retrógrada com máscara de preocupação com a segurança

ODS 5 • Publicada em 30 de abril de 2024 - 08:22 • Atualizada em 2 de maio de 2024 - 18:03

Para bem e para mal, sigo acompanhando as discussões e memes que brotam todos os dias na rede social que Elon Musk tenta, de todo jeito, estragar. Para bem porque ainda vem de lá boa parte das bobagens que me fazem rir fininho, sozinha, rolando a tela do celular. E para mal porque sabemos que boa parte do esgoto da internet desemboca por ali. Mas entre uma gargalhada e enquanto espero pelo saneamento básico das redes sociais, vou ficando por lá, como quem espera pra ver o que acontece num fim de festa.

Outro dia mesmo, a discussão da vez surgiu a partir da publicação de uma usuária que dizia que sexo casual só beneficia os homens, “porque o Brasil é líder em feminicídio”, e mulheres que se relacionam casualmente “correm o risco de não voltar para casa”. Obviamente, logo o conservadorismo do argumento foi apontado, além do fato de que “voltar para casa” é justamente o que vai tornar muitas mulheres vítimas de feminicídio. Ou de estupro. Ou de outras formas de violência de gênero. E não sou eu que digo isso.

Leu essa? Número de feminicídios sobe quase 50% em um ano

Segundo o último Anuário Brasileiro de Segurança Pública, sete em cada dez vítimas de feminicídio foram mortas dentro de casa. E em mais da metade do total de casos, o assassino foi o parceiro. Ainda de acordo com o levantamento, a maior parte dos estupros não ocorre em uma rua escura ou uma esquina deserta. E o estuprador não é um “monstro” ou um “doente” – 68,3% dos estupros ocorre dentro da casa das vítimas, e o agressor é, na maioria absoluta das vezes, um conhecido.

Maria da Penha, que deu seu nome à lei que busca proteger mulheres de violência doméstica, que o diga. Seu ex-marido e agressor primeiro atirou em suas costas enquanto ela dormia, causando sua paralisia. Posteriormente, tentou eletrocutá-la para finalizar o que começou. O crime teve alguma justiça, com sua prisão, às vésperas de prescrever; e recentemente, já solto, Marco Antonio Viveros foi ouvido, por Leda Nagle, para “dar sua versão dos fatos”. “O opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos”, como lembra Simone de Beauvoir. Existe benefício maior do que esse?

Atribuir ao sexo casual as violências que sofremos é só uma forma cruel de culpabilizar as vítimas (Foto: Rawpixel / Unsplash)
Atribuir ao sexo casual as violências que sofremos é só uma forma cruel de culpabilizar as vítimas (Foto: Rawpixel / Unsplash)

Harvey Weinsten, ex-magnata do cinema hollywoodiano, acusado de estupro e assédio sexual por mais de 30 atrizes, teve uma condenação por estupro anulada nos últimos dias pelo tribunal superior da Justiça de Nova York. Os crimes de Weinsten e as denúncias das estrelas foram tão contundentes que, na época, o caso desencadeou o movimento #MeToo, em que incontáveis mulheres denunciaram assédios que viveram usando a hashtag. E em 2024, sete anos depois, a Justiça invalida a condenação do predador, com base no argumento de que ele não teve um julgamento justo. Existe benefício maior que esse?

No fim das contas, querer atribuir ao sexo casual as violências que sofremos é só uma forma cruel de culpabilizar as vítimas e cercear a sexualidade das mulheres. Além do velho e bom conservadorismo disfarçado de preocupação com as mulheres. É claro que transar casualmente nos expõe a perigos de alguma forma.

Mas dentro de casa, em relacionamentos duradouros e monogâmicos, não estamos seguras. Se estamos, ainda estamos sujeitas à sobrecarga do trabalho doméstico, da maternidade, do cuidado com as pessoas, e tantas outras. Em relacionamentos não monogâmicos, somos muito mais julgadas pela sociedade do que os homens. Se estamos num relacionamento homoafetivo, somos fetichizadas, objetificadas, desrespeitadas e violentadas, “pra aprender a gostar de homem”. Se escolhemos ficar solteiras, somos amargas, encalhadas, “ficamos pra titia” (como se fosse ruim!). Se priorizamos nossas carreiras, somos egoístas. Se sonhamos em ser mães, somos submissas, antifeministas. Se nos maquiamos, somos fúteis. Se aparecemos de cara lavada, somos desleixadas. Eu poderia continuar por dias aumentando a lista, e isso porque não complexifiquei as relações de raça, classe, sexualidade, para mostrar que o buraco do patriarcado é muito mais embaixo e engole a nós todas – umas mais, outras menos, mas ninguém escapa.

O sexo casual pode até beneficiar os homens de alguma forma, sim. Mas em um mundo historicamente pensado pelos e para os homens, ainda que muitas de nós teimemos em ir contra a maré, eu prefiro continuar remando bravamente pra cima de qualquer onda de conservadorismo e caretice.

Apoie o #Colabora

Queremos seguir apostando em grandes reportagens, mostrando o Brasil invisível, que se esconde atrás de suas mazelas. Contamos com você para seguir investindo em um jornalismo independente e de qualidade.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Compartilhe:

Sair da versão mobile