Julia Sánchez*
Quase três décadas atrás, os governos assinaram a Declaração sobre a Eliminação da Violência contra as Mulheres. Desde então, leis sobre violência doméstica foram aprovadas em 155 países, e 140 tornaram o assédio sexual no local de trabalho ilegal. Mas a verdade é que, apesar do progresso substancial na conscientização, o mundo de hoje não é mais seguro para as mulheres. Na verdade, o problema atingiu proporções epidêmicas – globalmente, uma em cada três mulheres será estuprada, espancada, coagida ao sexo ou então abusada durante a vida.
Estamos caminhando de forma sonâmbula para uma segunda pandemia, de feminicídio global. Em junho, o relatório da ActionAid, Sobrevivendo à Covid-19: Uma Resposta Liderada por Mulheres, alertou sobre os impactos desproporcionais que a Covid-19 estava tendo sobre as mulheres e um aumento vertiginoso da violência. Abrigos para mulheres apoiados pela ActionAid relataram um aumento chocante de dez vezes na violência doméstica. Esses abrigos tiveram que lutar para permanecer abertos e para serem reconhecidos como serviços essenciais, enquanto os governos desviaram fundos para dar respostas à pandemia.
Gostando do conteúdo? Nossas notícias também podem chegar no seu e-mail.
Veja o que já enviamosNosso mais recente relatório, que vai ser lançado na próxima semana, observa mulheres jovens em assentamentos urbanos no sul global e revela o impacto que a Covid-19 teve em todos os aspectos de suas vidas. A maioria (58%) relatou aumento da violência durante o isolamento e citou grandes dificuldades para ganhar renda ou continuar estudando, para comprar comida e para acessar serviços públicos.
As mulheres enfrentam formas múltiplas de discriminação. As mulheres europeias lésbicas e bissexuais têm quase cinco vezes mais probabilidade de sofrer violência física e / ou sexual em comparação com as mulheres heterossexuais. Em Uganda, as meninas com deficiência têm duas vezes mais probabilidade de sofrer violência sexual na escola, em comparação com suas colegas sem deficiência.
Pessoas LGBTQIA+ e mulheres que são estruturalmente excluídas por raça, etnia, classe, casta, idade, deficiência ou outros fatores serão mais gravemente afetadas pela pandemia de Covid-19, pela violência que ela exacerba e pela restrição dos serviços públicos que vem na esteira.
Ainda assim, os programas de desenvolvimento raramente são pensados de forma interseccional. Ao reduzir um conjunto complexo de sistemas de opressão que se cruzam, perdemos o foco nos sistemas e nas práticas políticas (e culturais e religiosas) que levam à violência.
A pesquisa e a análise devem ser lideradas por mulheres e pessoas discriminadas para que nossa compreensão acerca da violência contra grupos específicos seja aprofundada. Pessoas LGBTQIA+, profissionais do sexo, mulheres vivendo na pobreza ou com HIV e AIDS, viúvas, mulheres acusadas de feitiçaria, mulheres no trabalho informal, mães solteiras ou pequenas agricultoras são afetadas pela pandemia de modos distintos e profundos pelo cruzamento da discriminação que enfrentam. Para lidar com essas diversas realidades, devemos primeiro ter acesso a dados sobre discriminação, que infelizmente quase nunca estão disponíveis. E então devemos documentar a experiência vivida por aqueles que estão em campo e na linha de frente. A própria pesquisa feminista da ActionAid é participativa, pois transfere o poder para as mulheres pesquisadas.
Somente adotando uma abordagem baseada nos direitos humanos e planejando sistemas de apoio integrados para as múltiplas experiências das mulheres jovens, podemos efetuar mudanças reais e duradouras. Para apoiar o empoderamento econômico das mulheres, podemos oferecer treinamento de habilidades e iniciativas de crédito, poupança e emprego. Podemos incentivar as meninas a concluírem o ensino médio e capacitá-las a escolher se, quando ou com quem vão se casar – além de garantir seus direitos reprodutivos. Tudo isso ajudará a mitigar a violência.
Mudar a cultura é o desafio mais difícil, mas é extremamente importante para garantir que o progresso seja sustentável. Como podemos eliminar crenças prejudiciais sobre vergonha e piedade, que levam a estupros que não são denunciados? Um passo é envolver os homens em conversas sobre atitudes. Muitos de nossos defensores dos direitos das mulheres nas comunidades são anciãos, líderes religiosos e jovens do meio urbano. Somente mudando as normas culturais teremos sucesso na eliminação da violência contra as mulheres.
Colocar as mulheres no comando durante as emergências nos ajuda a mudar os padrões de comportamento e a abordar questões estruturais e patriarcais mais enraizadas. A ActionAid acredita que o fortalecimento da liderança local em respostas humanitárias – especialmente de mulheres e meninas – é a chave para a eficácia. Uma abordagem liderada por mulheres também contribui para o progresso dos direitos das mulheres e da justiça de gênero nas comunidades afetadas pela crise. Mais de 60% do financiamento humanitário da ActionAid vai para organizações locais, e a maioria é composta por grupos de mulheres. Os grupos locais de mulheres precisam de mais financiamento, para que as necessidades reais da comunidade sejam atendidas, e para que haja uma mudança duradoura nas relações de poder.
Como setor, os doadores e as ONGs se comprometeram a fortalecer as localidades estabelecendo parcerias equitativas. Mas é mais fácil falar do que fazer. Ao oferecer uma plataforma aos parceiros locais, muitas vezes precisamos incluir nossa própria marca. O aumento de recursos destinados aos atores locais pode significar menos recursos para os atores internacionais em um ambiente com financiamento apertado. Abdicar do poder e do controle é um ato que encontra barreiras nas atitudes, políticas e regulamentos retrógrados que permanecem patriarcais, coloniais e assistencialistas.
Então, estamos dispostos a abrir mão do poder e dos recursos para permitir que comunidades e grupos locais de mulheres assumam liderança? Nossa resposta à crise da Covid-19 e à subsequente pandemia de violência de gênero certamente nos ajudará a encontrar a resposta. E, com esperança, em breve, não precisaremos mais de um Dia Internacional de Combate à Violência contra a Mulher.
*Secretária-Geral da ActionAid International