Definitivamente, eu me tornei uma mulher adulta sem religião. No entanto, possuo o que chamo de uma espiritualidade sincrética e coloquial: permeada por muitos ‘Graças a Deus’ de alívio, algumas olhadelas no horóscopo, réveillons passados de branco e pulando sete ondas, entre outras práticas religiosas profundamente enraizadas na brasilidade do cotidiano.
Na realidade, acho que todo tipo de aceno religioso que vem de coração é bem-vindo. Quando tive câncer, fiquei comovida com a quantidade de simpatias, orações, passes, novenas e promessas que tanta gente querida fez na intenção da minha cura. Mas obviamente, fiz quimioterapia, rádio e várias cirurgias. Estou aqui. Graças a Deus, à medicina, a quem cuidou de mim, e a mim mesma.
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No entanto, se tem uma coisa que me tira do sério é usar argumentos de uma pretensa espiritualidade para justificar e produzir desigualdades. No hall de muitas coisas que cabem neste conceito, o dito “Sagrado” Feminino faz meus olhos entrarem em looping eterno dentro do crânio.
Veja bem, não tem problema algum em adotar preceitos ditos espirituais para a própria vida, na individualidade, e ser feliz por se sentir uma pessoa elevada, completa, nutrida, ou sei lá o quê. Mas para querer falar em nome de uma coletividade, não dá pra ser sagrado “somente se”.
O Sagrado Feminino parte de uma ideia de mulher universal que, além de impraticável, valoriza uma “força” pautada na biologia, como a menstruação e a capacidade de gerar e nutrir. Para começo de conversa, se o que menstruar é o que me santifica, o que explica esse inferno de alterações de humor, retenção de líquido e dores que, segundo uma pesquisa da University College London, podem ser comparáveis a um enfarto?
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Veja o que já enviamosPiadas à parte, apenas em um mundo onde as mulheres são vistas como cidadãs de segunda classe é que se normaliza viver, trabalhar e realizar tarefas diárias apesar de se ter o corpo em ebulição. Sem mencionar o fato de que é justamente a menstruação que afasta meninas no mundo todo de uma das maiores portas de transformação social: a educação. De acordo com um relatório da ONU, 713 mil meninas no Brasil vivem sem acesso a banheiro ou chuveiro em suas casas e mais de 4 milhões de escolas carecem de itens básicos de cuidados menstruais. O que tem de tão divino em “ser cíclica”?
Esta obsessão por um feminino ancorado na biologia levanta muitas outras questões: se eu perder o meu útero, virarei o Sansão do Feminino, privada de minha força como o herói mítico ao perder a cabeleira? Se a noção de mulher está na menstruação e na gravidez, como fica a transsexualidade, visto que homens trans podem menstruar e engravidar e mulheres trans não? Devido ao câncer, tive que fazer uma mastectomia e reconstruir a mama com cirurgia plástica, meu saldo de sacralização fica devedor?
Em tempos de PL do estupro, reduzir corpos femininos a uma incubadora de gente é tão violento quanto querer que uma criança estuprada mantenha a gravidez “pela vida”. Não é uma comparação simétrica, claro, mas é a generalização patriarcal e violenta de que o valor de nossas vidas está atrelado à possibilidade de gerarmos outra. Sem falar que ao romantizar o “gerar a vida” desconsideramos as desigualdades sofridas por muitas neste processo. O que há de sagrado na violência obstétrica contra mulheres negras, periféricas e de baixa renda?
As Ciências Sociais vêm batalhando, há muitas décadas, para separar a mulher desse estado “selvagem”, da relação com a natureza. Na antropologia, isso é exemplificado pela separação entre natureza e cultura. Historicamente dominada por homens, a Ciência tendia a posicionar as mulheres no domínio da natureza – ‘aquilo que não se pode controlar’ – não de uma forma rebelde e emancipada como o Coração Selvagem de Belchior, mas como seres insanos, indecifráveis e inexplicáveis. Isso explica também porque ainda se sabe tão pouco sobre o corpo feminino – seja ele qual for – e que mulheres sofram anos a fio por males não diagnosticados simplesmente porque não se dedicaram o suficiente ao estudo de nossa anatomia. “No extremo oposto, os homens são associados à cultura – conhecimento, leis e normas.” Não precisa ser gênio para ligar “lé com cré” e entender o motivo pelo qual os saberes, os direitos e as regras sociais beneficiam exatamente os homens.
Além disso, muitas das práticas sacralizadas são inviáveis para mulheres que enfrentam jornadas de trabalho intensas e não têm o luxo de pararem de trabalhar para, por exemplo “celebrar a ancestralidade”. E digo mais: por mais que honrem a história de suas antepassadas, há mulheres que preferem romper com (e com razão) a herança de uma ancestralidade marcada por violência, opressão e, não raramente, extermínio. Honrar as que vieram antes é, antes de tudo, buscar garantir um futuro melhor para si e para as próximas. “Eu não sei de onde vem essa mentalidade branca de que o sofrimento ensina”, disse Ailton Krenak, e eu, branca, concordo.
A cada 24 horas, ao menos oito mulheres são vítimas de violência no Brasil, segundo o IBGE. De acordo com o Ministério das Mulheres, a cada 8 minutos, uma mulher é estuprada, sendo a maioria das vítimas menores de 14 anos, negras e de baixa renda. Somos, pelo 15º ano consecutivo, o país que mais mata pessoas trans. Enquanto a feminilidade for o motivo de sermos tão violentadas e exterminadas, é no mínimo ingênuo, e no limite cruel, ver algo de sagrado no feminino.
É como disse Audre Lorde: “Eu não sou livre enquanto alguma mulher não o for, mesmo quando as correntes dela forem muito diferentes das minhas”. Por isso, meu feminino é laico, e eu só hei de correr com lobos se for em luta por nossos direitos.