“Escritor compulsivo”, como ele mesmo se define, Frei Betto começou a escrever um diário assim que entrou em quarentena. Há textos mais longos – como seu acompanhamento dos últimos dias do presidente Tancredo Neves; há registros lacônicos do avanço do número de mortes e casos pandemia da covid-19 no Brasil. E há também outras memórias, reflexões espirituais, relatos cotidianos, análises políticas e textos ficcionais. Mas o frade dominicano, teólogo, escritor e jornalista Carlos Alberto Libânio Christo – mineiro, de 76 anos – não deixou de escrever um dia sequer entre 18 de março e 16 de junho. Os textos deram forma ao seu 69º livro: ‘Diário de quarentena – 90 dias em fragmentos evocativos’, que chega às livrarias neste sábado, 17 de outubro, pela Editora Rocco.
Logo no começo do seu Diário de Quarentena, Frei Betto afirma não se queixar da reclusão forçada por estar cansado de tantas viagens – vivendo em um convento na capital paulista, o escritor tinha, antes da pandemia, uma rotina intensa de palestras, aulas, debates e lançamentos de livros. No sexto dia, ainda em março, escreveu, em forma de mensagem ao amigo Paulo – que o leitor não sabe ser real ou de ficção – uma lista de 10 dicas para suportar o período de reclusão forçada, lembrando seus muitos dias em solitárias nos cárceres de prisões em São Paulo e Porto Alegre durante a ditadura: criar rotinas, não ficar o dia todo no computador, meditar e escrever um diário são algumas delas. Durante o livro, o amigo Paulo não aguenta o confinamento, sai para rua para desespero de sua mulher, Alice, recebe o diagnóstico de covid-19, é internado e acaba morrendo.
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Veja o que já enviamosAs redes digitais tendem a infantilizar o contato entre pessoas. Exemplos disso são Trump e Bolsonaro. Falam com o fígado, sem a menor coerência e fidelidade aos fatos. Estes não importam, e sim as versões que eles criam.
[/g1_quote]Profundamente religioso, Frei Betto fala de Deus e com Deus. E também critica quem usa o Seu nome em vão. “No mercado das crendices, há deus para todos os gostos: deus-tapa-olho, deus-tapa-ouvido, deus-juiz, deus-policial, deus-terrorista, deus-vampiro, deus-pronto socorro, deus-antiDeus. Há, inclusive, o deus daqueles que se julgam proprietários privados de Deus”, escreveu no 9º dia. Filósofo, reflete sobre pensamentos de Aristóteles, de Kant, de Marx, de Buda. E lembra o grego Sócrates: “o filósofo, quando percorria as ruas comerciais de Atenas, dizia observar quinta coisa existia de que não precisava”. Pensador político, consultor de movimentos sociais, ex-coordenador do Programa Fome Zero, Frei Betto chama o presidente da República de BolsoNero – antes mesmo da The Economist e dos incêndios no Pantanal e na Amazônia): “Não fosse tão omisso e desdenhoso, poderia fazer muito para evitar um genocídio”.
Ainda longe de retomar sua rotina, Frei Betto respondeu, por email, a algumas perguntas do #Colabora, sobre a pandemia e o Brasil:
#Colabora: O senhor começou um diário já pensando em transformá-lo num livro? Ou era apenas um exercício para enfrentar o confinamento?
Frei Betto: Já pensava em publicá-lo em livro. Sou um escritor compulsivo. Este é minha 69º obra literária. As demais o leitor pode conhecer por minha Livraria Virtual: freibetto.org
O senhor efetivamente se obrigou a escrever todos os dias? Nos dias em que há apenas um registro das mortes, foi por falta de inspiração?
Por falta de tempo, pois trabalhei, durante o período mais forte de reclusão, em três outros projetos literários: um livro infanto-juvenil; outro sobre Bíblia; e o terceiro, um romance em andamento. De modo que nem todo dia eu me dedicava ao “Diário de quarentena”.
No livro, o senhor faz, para um amigo, uma lista de 10 dicas para o enfrentar o confinamento inspiradas em seu tempo na prisão: o senhor efetivamente seguiu suas próprias dicas?
São dicas realmente inspiradas nos quatro anos em que estive preso (1969-1973) durante a ditadura militar. Estão descritos em minhas “Cartas de prisão” (Companhia das Letras) e em “Diário de Fernando – nos cárceres da ditadura militar brasileira” (Rocco). Mas não segui todas as dicas, pois não me dediquei a jogos, não fiz trabalhos manuais (exceto eventualmente cozinhar) nem fiquei ao telefone (sou muito conciso nessa forma de comunicação).
A história do casal Paulo e Alice é verdadeira?
É verdadeira, exceto os nomes dos personagens. Ainda hoje mantenho contato com Alice, que me autorizou contar a história.
O senhor escreve, ainda em abril, que, no Brasil atual “parece não haver meio-termo”: tinha uma expectativa naquele momento de que a pandemia poderia mudar isso? Acredita que algo mudou ou ainda poderá mudar? Estamos mais perto de meio-termos?
Infelizmente o radicalismo perdura, não só no Brasil, mas tenho a impressão de que em todo o mundo. As redes digitais tendem a infantilizar o contato entre pessoas. Exemplos disso são Trump e Bolsonaro. Falam com o fígado, sem a menor coerência e fidelidade aos fatos. Estes não importam, e sim as versões que eles criam. Como é possível Trump não condenar os supremacistas brancos e Bolsonaro botar a culpa das queimadas nos “índios e caboclos”? Um horror!
No dia 30 de abril, o senhor conta ter enviado um texto (que terminava com citação de Fernando Pessoa) aos amigos que não suportavam a quarentena. Enviou realmente esse texto? Chegou a ter raiva de pessoas que estavam rompendo a quarentena já naquela época?
Sim, durante a quarentena, enviei, diariamente, textos espirituais aos participantes dos grupos de oração que acompanho – uma centena de pessoas – e a alguns amigos e amigas. Foram 130 textos em 130 dias. E nunca tive raiva de pessoas que romperam a quarentena. Critico, sim, o governo Bolsonaro, pelo modo como patrocina o genocídio que, agora, chega a mais de 150 mil vítimas. Muitas mortes teriam sido evitadas se o nosso (des)governo tivesse agido como os governos europeus, que coordenaram as ações frente à pandemia.
Imagino que Boaventura, o especialista em pêsames descrito no 78º, seja um personagem ficcional: qual a inspiração para ele? O senhor, recluso, pensava muito na falta que podia estar fazendo para consolar os vivos?
Sim, Boaventura é uma ficção. Esse horror de as famílias sequer poderem velar seus mortos e promover cerimônias fúnebres é que me levou a escrever o texto.
Mais de uma vez, o senhor levanta dúvida sobre o legado da pandemia. Qual a sua avaliação três meses depois de encerrado o diário? O que o senhor acredita em que vai mudar (ou está mudando) para melhor na sociedade? E o que imagina que pode piorar?
Sou pessimista quanto ao legado. Embora a pandemia tenha suscitado solidariedade entre muitas pessoas, em especial em meio aos mais empobrecidos, os interesses do capital falaram mais alto: pressão pela flexibilização; reabertura de bares e restaurantes; escolas e centros turísticos etc. E, aqui no Brasil, o governo deu uma esmola aos mais pobres, sem tomar nenhuma medida como as implementadas por governos da Europa ocidental. No Reino Unido e na França, os governos chegam a compensar, quem está sem poder trabalhar, com 80% do salário que a pessoa recebia. Na França, para os trabalhadores da área de turismo, a cobertura é de 100%.
O senhor classifica a agora famosa reunião ministerial do dia 22 de abril de “crônica de uma ditadura anunciada”. O senhor acha que ela realmente virá? BolsoNero, como o senhor o chama, teria força para fechar o Congresso e o STF como alguns desejam?
A esta altura, já não penso que estamos no rumo de uma ditadura. Bem que Bolsonaro tentou, mas não encontrou apoio nem mesmo entre os militares. Chegou a cogitar com eles a possibilidade de fechar o STF e o Congresso, mas felizmente não foi ouvido. No entanto, estamos entregues a um presidente necrófilo, obcecado por armas, e indiferente a tudo que possa resultar em morte dos cidadãos, do uso da cadeirinha de bebê em veículos (que ele tentou suprimir) à inércia diante das queimadas em nossos principais biomas.
O senhor dizia não se queixar da reclusão. Quanto tempo imaginava que a quarentena ia durar? E, em algum momento, passou a se queixar da reclusão? Ainda está em quarentena, em outubro, quase sete meses depois?
Pensei que duraria menos. Imaginei, em março, que até agosto ou setembro voltaríamos a não mais necessitar de reclusão. Equivoquei-me. Enquanto não surgir a vacina, e ela for massivamente aplicada, estaremos sujeitos à covid-19. Agora estou menos recluso, saio à rua para ir ao dentista ou cortar o cabelo, mas sempre munido de muitas precauções. Sobretudo evito aglomerações.