Frei Betto lança Diário da Quarentena: “estamos entregues a um presidente necrófilo”

Escritor transforma em livro textos dos primeiros 90 dias de confinamento e diz estar pessimista com legado da pandemia: "interesses do capital falaram mais alto"

Por Oscar Valporto | ODS 16ODS 3 • Publicada em 16 de outubro de 2020 - 09:00 • Atualizada em 21 de outubro de 2020 - 08:58

Frade Dominicano, escritor, filósofo e teóloco, Frei Betto está lançando seu 69º livro: Diário da Quarentena – 90 dias em fragmentos evocativos reúne reflexões espirituais, memórias, crônicas e contos produzidos durante a pandemia (Foto: João Laet/Divulgação)

“Escritor compulsivo”, como ele mesmo se define, Frei Betto começou a escrever um diário assim que entrou em quarentena. Há textos mais longos – como seu acompanhamento dos últimos dias do presidente Tancredo Neves; há registros lacônicos do avanço do número de mortes e casos pandemia da covid-19 no Brasil. E há também outras memórias, reflexões espirituais, relatos cotidianos, análises políticas e textos ficcionais. Mas o frade dominicano, teólogo, escritor e jornalista Carlos Alberto Libânio Christo – mineiro, de 76 anos – não deixou de escrever um dia sequer entre 18 de março e 16 de junho. Os textos deram forma ao seu 69º livro: ‘Diário de quarentena – 90 dias em fragmentos evocativos’, que chega às livrarias neste sábado, 17 de outubro, pela Editora Rocco.

No livro, Frei Betto – que ficou preso por quatro anos, durante a ditadura, por colaborar com guerrilheiros – reflete, mais de uma vez, sobre o dia seguinte da pandemia, do legado que deixaria na sociedade. “Há malas que vêm de trem, como se diz em Minas. A pandemia desmoralizou o discurso neoliberal de eficiência do livre mercado. Como em crises anteriores, mais uma vez se recorreu ao papel interventor do Estado. Talvez isso suscite cautela ante às propostas de privatização e até mesmo incentive”, escreveu, em maio, no 56º dia. “Com certeza, o isolamento social nos deixará boas lições”, refletiu, um pouco antes, em abril”. Às vésperas do lançamento do livro, o escritor é mais cético: “Sou pessimista quanto ao legado. Embora a pandemia tenha suscitado solidariedade entre muitas pessoas, em especial em meio aos mais empobrecidos, os interesses do capital falaram mais alto: pressão pela flexibilização; reabertura de bares e restaurantes; escolas e centros turísticos”, lamenta.

Logo no começo do seu Diário de Quarentena, Frei Betto afirma não se queixar da reclusão forçada por estar cansado de tantas viagens – vivendo em um convento na capital paulista, o escritor tinha, antes da pandemia, uma rotina intensa de palestras, aulas, debates e lançamentos de livros. No sexto dia, ainda em março, escreveu, em forma de mensagem ao amigo Paulo – que o leitor não sabe ser real ou de ficção – uma lista de 10 dicas para suportar o período de reclusão forçada, lembrando seus muitos dias em solitárias nos cárceres de prisões em São Paulo e Porto Alegre durante a ditadura: criar rotinas, não ficar o dia todo no computador, meditar e escrever um diário são algumas delas. Durante o livro, o amigo Paulo não aguenta o confinamento, sai para rua para desespero de sua mulher, Alice, recebe o diagnóstico de covid-19, é internado e acaba morrendo.

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As redes digitais tendem a infantilizar o contato entre pessoas. Exemplos disso são Trump e Bolsonaro. Falam com o fígado, sem a menor coerência e fidelidade aos fatos. Estes não importam, e sim as versões que eles criam.

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Profundamente religioso, Frei Betto fala de Deus e com Deus. E também critica quem usa o Seu nome em vão. “No mercado das crendices, há deus para todos os gostos: deus-tapa-olho, deus-tapa-ouvido, deus-juiz, deus-policial, deus-terrorista, deus-vampiro, deus-pronto socorro, deus-antiDeus. Há, inclusive, o deus daqueles que se julgam proprietários privados de Deus”, escreveu no 9º dia. Filósofo, reflete sobre pensamentos de Aristóteles, de Kant, de Marx, de Buda. E lembra o grego Sócrates: “o filósofo, quando percorria as ruas comerciais de Atenas, dizia observar quinta coisa existia de que não precisava”. Pensador político, consultor de movimentos sociais, ex-coordenador do Programa Fome Zero, Frei Betto chama o presidente da República de BolsoNero – antes mesmo da The Economist e dos incêndios no Pantanal e na Amazônia): “Não fosse tão omisso e desdenhoso, poderia fazer muito para evitar um genocídio”.

Ainda longe de retomar sua rotina, Frei Betto respondeu, por email, a algumas perguntas do #Colabora, sobre a pandemia e o Brasil:

#Colabora: O senhor começou um diário já pensando em transformá-lo num livro? Ou era apenas um exercício para enfrentar o confinamento?

Frei Betto: Já pensava em publicá-lo em livro. Sou um escritor compulsivo. Este é minha 69º obra literária. As demais o leitor pode conhecer por minha Livraria Virtual: freibetto.org

O senhor efetivamente se obrigou a escrever todos os dias? Nos dias em que há apenas um registro das mortes, foi por falta de inspiração?

Por falta de tempo, pois trabalhei, durante o período mais forte de reclusão, em três outros projetos literários: um livro infanto-juvenil; outro sobre Bíblia; e o terceiro, um romance em andamento. De modo que nem todo dia eu me dedicava ao “Diário de quarentena”.

No livro, o senhor faz, para um amigo, uma lista de 10 dicas para o enfrentar o confinamento inspiradas em seu tempo na prisão: o senhor efetivamente seguiu suas próprias dicas?

São dicas realmente inspiradas nos quatro anos em que estive preso (1969-1973) durante a ditadura militar. Estão descritos em minhas “Cartas de prisão” (Companhia das Letras) e em “Diário de Fernando – nos cárceres da ditadura militar brasileira” (Rocco). Mas não segui todas as dicas, pois não me dediquei a jogos, não fiz trabalhos manuais (exceto eventualmente cozinhar) nem fiquei ao telefone (sou muito conciso nessa forma de comunicação).

A história do casal Paulo e Alice é verdadeira?

É verdadeira, exceto os nomes dos personagens. Ainda hoje mantenho contato com Alice, que me autorizou contar a história.

O senhor escreve, ainda em abril, que, no Brasil atual “parece não haver meio-termo”: tinha uma expectativa naquele momento de que a pandemia poderia mudar isso? Acredita que algo mudou ou ainda poderá mudar? Estamos mais perto de meio-termos?

Infelizmente o radicalismo perdura, não só no Brasil, mas tenho a impressão de que em todo o mundo. As redes digitais tendem a infantilizar o contato entre pessoas. Exemplos disso são Trump e Bolsonaro. Falam com o fígado, sem a menor coerência e fidelidade aos fatos. Estes não importam, e sim as versões que eles criam. Como é possível Trump não condenar os supremacistas brancos e Bolsonaro botar a culpa das queimadas nos “índios e caboclos”? Um horror!

Frei Betto e suas reflexões durante a quarentena: “No mercado das crendices, há deus para todos os gostos: deus-tapa-olho, deus-tapa-ouvido, deus-juiz, deus-policial, deus-terrorista, deus-vampiro,deus-pronto socorro, deus-antiDeus. Há, inclusive, o deus daqueles que se julgam proprietários privados de Deus”. (Foto: João Laet/Divulgação)

No dia 30 de abril, o senhor conta ter enviado um texto (que terminava com citação de Fernando Pessoa) aos amigos que não suportavam a quarentena. Enviou realmente esse texto? Chegou a ter raiva de pessoas que estavam rompendo a quarentena já naquela época?

Sim, durante a quarentena, enviei, diariamente, textos espirituais aos participantes dos grupos de oração que acompanho – uma centena de pessoas – e a alguns amigos e amigas. Foram 130 textos em 130 dias. E nunca tive raiva de pessoas que romperam a quarentena. Critico, sim, o governo Bolsonaro, pelo modo como patrocina o genocídio que, agora, chega a mais de 150 mil vítimas. Muitas mortes teriam sido evitadas se o nosso (des)governo tivesse agido como os governos europeus, que coordenaram as ações frente à pandemia.

Imagino que Boaventura, o especialista em pêsames descrito no 78º, seja um personagem ficcional: qual a inspiração para ele? O senhor, recluso, pensava muito na falta que podia estar fazendo para consolar os vivos?

Sim, Boaventura é uma ficção. Esse horror de as famílias sequer poderem velar seus mortos e promover cerimônias fúnebres é que me levou a escrever o texto.

Mais de uma vez, o senhor levanta dúvida sobre o legado da pandemia. Qual a sua avaliação três meses depois de encerrado o diário? O que o senhor acredita em que vai mudar (ou está mudando) para melhor na sociedade? E o que imagina que pode piorar?

Sou pessimista quanto ao legado. Embora a pandemia tenha suscitado solidariedade entre muitas pessoas, em especial em meio aos mais empobrecidos, os interesses do capital falaram mais alto: pressão pela flexibilização; reabertura de bares e restaurantes; escolas e centros turísticos etc. E, aqui no Brasil, o governo deu uma esmola aos mais pobres, sem tomar nenhuma medida como as implementadas por governos da Europa ocidental. No Reino Unido e na França, os governos chegam a compensar, quem está sem poder trabalhar, com 80% do salário que a pessoa recebia. Na França, para os trabalhadores da área de turismo, a cobertura é de 100%.

O senhor classifica a agora famosa reunião ministerial do dia 22 de abril de “crônica de uma ditadura anunciada”. O senhor acha que ela realmente virá? BolsoNero, como o senhor o chama, teria força para fechar o Congresso e o STF como alguns desejam?

A esta altura, já não penso que estamos no rumo de uma ditadura. Bem que Bolsonaro tentou, mas não encontrou apoio nem mesmo entre os militares. Chegou a cogitar com eles a possibilidade de fechar o STF e o Congresso, mas felizmente não foi ouvido. No entanto, estamos entregues a um presidente necrófilo, obcecado por armas, e indiferente a tudo que possa resultar em morte dos cidadãos, do uso da cadeirinha de bebê em veículos (que ele tentou suprimir) à inércia diante das queimadas em nossos principais biomas.

O senhor dizia não se queixar da reclusão. Quanto tempo imaginava que a quarentena ia durar? E, em algum momento, passou a se queixar da reclusão? Ainda está em quarentena, em outubro, quase sete meses depois?

Pensei que duraria menos. Imaginei, em março, que até agosto ou setembro voltaríamos a não mais necessitar de reclusão. Equivoquei-me. Enquanto não surgir a vacina, e ela for massivamente aplicada, estaremos sujeitos à covid-19. Agora estou menos recluso, saio à rua para ir ao dentista ou cortar o cabelo, mas sempre munido de muitas precauções. Sobretudo evito aglomerações.

Oscar Valporto

Oscar Valporto é carioca e jornalista – carioca de mar e bar, de samba e futebol; jornalista, desde 1981, no Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, no Governo do Rio, no Viva Rio, no Comitê Olímpico Brasileiro. Voltou ao Rio, em 2016, após oito anos no Correio* (Salvador, Bahia), onde foi editor executivo e editor-chefe. Contribui com o #Colabora desde sua fundação e, desde 2019, é um dos editores do site onde também pública as crônicas #RioéRua, sobre suas andanças pela cidade

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