Aumento do fluxo turístico ameaça pataxós com covid-19

Muitas aldeias do Sul da Bahia, mesmo fechadas ao público devido à pandemia, têm sido alvo de visitantes indesejados e sem qualquer cuidado

Por Mari Campos | ODS 3 • Publicada em 4 de fevereiro de 2021 - 08:27 • Atualizada em 9 de fevereiro de 2021 - 09:26

Reunião na aldeia pataxó Novos Guerreiros para preparar medidas para barrar visitantes: medo da covid-19 (Foto: Thyara Pataxó)

Nesta dura fase da pandemia, o novo coronavírus continua a avançar em territórios indígenas. Até semana passada, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) contabilizava 941 mortes de indígenas pela covid-19, com mais de 47 mil cassos da doença. Enquanto as invasões das terras por parte de garimpeiros constituem a principal ameaça à saúde de algumas etnias – como os Yanomamis, no extremo norte do Brasil -, a covid-19 pode estar sendo levada a outras aldeias, em diferentes regiões do país por uma atividade bem diferente e quase sempre legal: o turismo.

Visitas turísticas a aldeias chegaram a ser proibidas judicialmente em alguns municípios brasileiros – como Epitaciolândia, no interior do Acre – justamente para tentar conter os avanços da pandemia entre a população indígena. Mas a situação é especialmente complicada neste começo de ano em aldeias pataxó no sul da Bahia. Com a chegada da alta temporada e o maior afluxo de turistas à região desde o mês passado, muitas aldeias pataxó estão recebendo visitantes – muitas vezes sem terem dado permissão.

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Nós colocamos até cadeado na entrada da aldeia, controlamos a saída e entrada dos moradores. Mas alguns visitantes são muito invasivos.

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Agora, os casos da doença não param de crescer em diferentes aldeias pataxós. Algumas delas – como a Aldeia Novos Guerreiros, localizada dentro do território indígena Ponta Grande, no Sul da Bahia – tiveram no começo de 2021 as primeiras mortes causadas pela covid-19. “Nossas aldeias estão enfrentando uma luta árdua contra o coronavírus. Os casos só aumentam e há visitantes que não usam máscaras, nem álcool em gel, e passeiam como se não estivéssemos em uma pandemia”, reclama Thyara Pataxó, conselheira da ASSUHÃ (Associação Indígena Novos Guerreiros) e segunda secretária da AJIP (Associação da Juventude Indígena Pataxó).

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Desde o começo da pandemia, a maior parte das aldeias da região aboliu temporariamente suas atividades turísticas para conter a disseminação da doença. De acordo com a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde, foram registrados 720 casos na Bahia, onde os indígenas estão concentrados no sul do estado, com sete mortos. Atualmente, há algumas terras indígenas abertas atualmente para o turismo, mas muitas aldeias, mesmo ainda fechadas à visitação, alertam que turistas brasileiros têm burlado as restrições.

Thyara Pataxó com a filha: "Nossa maior preocupação hoje é o fluxo intenso de não indígenas dentro de nossas comunidades" (Foto: Arquivo Pessoal)
Thyara Pataxó com a filha: “Nossa maior preocupação hoje é o fluxo intenso de não indígenas dentro de nossas comunidades” (Foto: Arquivo Pessoal)

“Nossa maior preocupação hoje é o fluxo intenso de não indígenas dentro de nossas comunidades”, explica Thyara, acrescentando que, na Novos Guerreiros, as visitas continuam não sendo bem-vindas na pandemia. “Nós colocamos até cadeado na entrada da aldeia, controlamos a saída e entrada dos moradores. Mas alguns visitantes são muito invasivos. Há turistas que chegam por conta própria, por agências clandestinas e por agências legais também, e vão entrando”, desabafa a líder pataxó.

As lideranças indígenas lembram que, como princípio básico do turismo sustentável, a indústria turística deve cuidar das comunidades visitadas constantemente. Hotéis, pousadas e receptivos podem e devem orientar os turistas sobre as práticas mais sustentáveis, particularmente em tempos de pandemia. Receptivos trabalhando com visitas turísticas a aldeias indígenas precisam estar 100% seguros de que determinada aldeia deseja de fato receber visitantes nestes tempos antes de oferecer o passeio a viajantes.

O turismo é importante para o sustento das aldeias mas há outras formas de contribuir com as comunidades indígenas durante a pandemia. Thyara Pataxó sugere que sejam feitas doações para associações como a ASSUAHÃ e a AJIP. “As duas associações estão abertas para qualquer tipo de doação, seja de alimentos, produtos de higiene ou dinheiro. Fica muito a critério de quem quer ajudar. Foram ambas muito importantes para nós durante a pandemia porque conseguiram arrecadar doações de alimentos e disponibilizar para todos nas comunidades”, explica.

Desde julho, o Supremo Tribunal Federal já rejeitou três planos – considerados vagos e genéricos – do governo federal para o enfrentamento da covid-19 na população indígena. Boa parte dos indígenas segue diariamente exposto à doença na busca do seu sustento. “Importante sinalizar que, devido à grande demanda de pessoas na região, muita gente das comunidades, por necessidade financeira, teve que sair para trabalhar. A Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena) não está dando suporte e a Funai também não fez nenhum plano de prevenção e conscientização dos visitantes”, explica Thyara.

Reservas abertas querem mostrar cuidados

Mesmo assim, nem todas as aldeias pataxó estão fechadas para o turismo na pandemia. É o caso da Reserva Porto do Boi, na região de Caraíva, que, após muitos meses fechada, decidiu reabrir recentemente suas atividades turísticas. “Não adianta querer ajudar financeiramente sem querer ajudar a cuidar da terra que está pedindo socorro. Acho um pouco injusto as pessoas só doarem sem conhecer. Fica aquele ego, ‘ai, eu ajudei, eu ajudei'”, defende Tapy Pataxó, outra jovem liderança feminina. “A gente conversou muito aqui antes de reabrir e recomeçar a receber as visitas sobre que cuidados íamos ter. E decidimos mostrar também para as pessoas todos esses cuidados, cuidados inclusive que deveríamos ter tomado antes”.

Tapy conta que, enquanto estiveram fechados para o turismo, os indígenas da reserva aproveitaram para se organizar e para fazer coisas na reserva que antes não conseguiam fazer pela falta de tempo. E explica que esperam que o conhecimento e a cultura da aldeia possam ser disseminados com a retomada das visitas. “Isso foi bom para valorizarmos e fortalecermos a medicina que temos nos nossos quintais. Plantar cada vez mais, saber que as plantas têm um poder que as pessoas geralmente não conhecem e não valorizam. Muita gente corre para a farmácia para tomar um comprimido mas tem preguiça de fazer um chá, de esperar 20 minutos o chá ficar pronto”, afirma.

Com a visitação turística retomada na reserva, ela aproveita para analisar o comportamento de parte dos visitantes nesta fase. “Tem gente que não sabe nem como é plantada uma cenoura! A gente voltar para nossas verdadeiras origens é de muita importância. As pessoas estão desesperadas, correndo pra reserva pra tomar banho com plantas medicinais, pra se conectar com a terra. Eu fico só analisando o desespero do ser humano”, comenta. E ressalta: “Enquanto o ser humano não plantar amor para colher amor, não cuidar da terra, sempre vai existir ‘Covid’- só vai mudar de nome”.

Comunidades se fecham ao turismo também nos EUA

Fora do Brasil, diversas etnias vulneráveis também fecharam suas portas por completo ao turismo para tentar se proteger. É o caso, por exemplo, da comunidade indígena de Taos Pueblo, uma das 23 comunidades indígenas do Novo México do Novo México, EUA. Apesar de ser a mais famosa comunidade local do ponto de vista turístico (povoado declarado patrimônio mundial da Unesco), ela agora exibe, logo à entrada do povoado, uma placa que pede “Por favor, não visite o Taos Pueblo”. O aviso explica a súplica logo em seguida: “Entendemos os desafios que surgiram com este vírus e a indústria do turismo, mas queremos ter certeza de que nossa comunidade e visitantes estão sãos e salvos”.

Turismo sempre foi ali uma das principais fontes de renda da comunidade. Mas seus membros entenderam agora que arriscar o bem estar de uma população de risco em uma região com pouca infraestrutura não era uma opção viável. Diversas outras tribos do Novo México estão atualmente fechadas para o turismo para garantir sua sobrevivência à covid-19.

Mari Campos

É jornalista formada e premiada que há 16 anos trabalha como freelancer especializada em turismo, colaborando com diversos jornais, revistas e sites no Brasil e também em outros seis países. Rodando o mundo todo desde sempre, o continente africano é até hoje uma de suas grandes paixões.

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2 comentários “Aumento do fluxo turístico ameaça pataxós com covid-19

  1. Elaine Villatoro disse:

    Mari, parabéns pelo artigo! Finalmente li um conteúdo sobre turismo em terras indígenas em tempos de pandemia que de fato falou com aldeias, as ouviu, e mencionou os diferentes pontos de vista citando os nomes de cada uma. Precisávamos muito disso, obrigada!

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