Receba as colunas de Aydano André Motta no seu e-mail

Veja o que já enviamos

O desprezo ao Cais do Valongo nos define como (lamentável) sociedade

Sítio histórico mais importante sobre a escravidão jaz no abandono e no jogo de empurra dos homens públicos, dificultando o combate à nossa mazela formadora: o racismo

ODS 10ODS 16 • Publicada em 6 de setembro de 2024 - 11:41 • Atualizada em 6 de setembro de 2024 - 14:37

Os brasileiros temos dificuldade quase invencível para encarar as muitas lembranças ruins, incômodas, vergonhosas da sociedade que se formou aqui. O prontuário de tragédias costuma ser varrido para debaixo do tapete em nome da ilusão do povo risonho, fraterno, acolhedor – e falso como uma nota de três reais. Em verdade, somos violentos, hipócritas e excludentes.

Leu essa? Autoritarismo e desigualdade, história do Brasil

O descaso com a própria história (que leva a repeti-la, ensina o bordão atribuído a um punhado de autores) grita, em particular, no abandono do principal sítio histórico do país relativo à escravidão. O Cais do Valongo, na região da Pequena África, no Rio de Janeiro, jaz se deteriorando, em meio ao lixo, à falta de iluminação e sinalização, num estado indigno de sua importância.

Garis recolhem lixo no Cais do Valongo, na região portuária, alagado depois das chuvas de março de 2022: problema recorrente. Foto Tânia Rego/Agência Brasil
Garis recolhem lixo no Cais do Valongo, na região portuária, alagado depois das chuvas de março de 2022: problema recorrente. Foto Tânia Rego/Agência Brasil

Se a aventura brasileira, a partir da invasão portuguesa de 1500, fosse reunida num livro com o mínimo de honestidade intelectual, a capa seria o mais fácil de decidir: a escravidão. O terror de milhões de seres humanos sequestrados em seus territórios e violentados como propriedade de outros naturalizou-se nessa terra ensolarada por 350 anos. Ao terminar num conchavo servil à elite econômica, cristalizou o racismo nosso de cada dia.

Jamais por acaso, em 2023, exatos 3.190 trabalhadores foram libertados de condições análogas à escravidão – 135 anos depois da Lei Áurea. Os crimes se repetem na produção agrícola e na moda, além daquelas histórias horrorosas de trabalhadores domésticos, submetidos a décadas de cativeiro por famílias brancas endinheiradas. Os casos de intolerância se multiplicam e o preconceito menospreza religiões, comportamento, personagens, criações e a estética dos negros. Apesar dos avanços, os melhores lugares, nos parâmetros sociais e econômicos, seguem distantes dos descendentes d’África.

Muito menos gente do que deveria se importa com mazela tão presente. Como se diz hoje em dia, as caras brasileiras nem ardem, por viver no país mais racista da Terra. O desconhecimento da história trava o avanço da empatia – e é aqui que entra a importância de lugares (raros) como o Cais do Valongo.

Descoberto em 2011 nas reformas da região portuária carioca, o lugar, construído em 1811, foi o destino central dos escravizados na cidade que mais pessoas em tal condição no mundo. Passou por ali pelo menos um milhão de africanos desembarcados dos tumbeiros que atravessaram o Atlântico. Em 2017, o Valongo foi elevado pela Unesco a Patrimônio Mundial da Humanidade, pelo seu inestimável valor histórico.

Mas nem assim passou a receber o tratamento devido, porque aqui nada vence o racismo. O desprezo supera até as urgências eleitorais – em plena temporada de caça aos votos, os homens públicos se aboletam no jogo de empurra que deixa o sítio da Pequena África cheio de lixo, vulnerável a enchentes, mal iluminado e com sinalização e segurança insuficientes. Um vexame.

Como toca a banda da burocracia: Prefeitura do Rio e Iphan dividem a gestão do Valongo. A autoridade municipal cuida de iluminação, placas explicativas, obras de drenagem, limpeza cotidiana. Além disso, realiza, via secretaria do Meio Ambiente, ações promocionais, como a inclusão no circuito da Pequena África, passeios de bicicleta, além de acompanhamento de dados. Ao órgão federal do patrimônio, cabem a preservação, os estudos sobre a descoberta e a catalogação no patrimônio.

Diante do cenário de abandono, falta ousadia. Houve várias ameaças, ao longo dos anos, de perder o título da Unesco, mas segue cada um no seu quadrado, no jogo de empurra que turva a importância do lugar. Tanto que dia 20 passado, a Justiça Federal determinou à União adoção de medidas urgentes para garantir a preservação. Dias depois, o BNDES entrou na história, reservando R$ 10 milhões (e a mesma quantia a ser captada pela iniciativa privada) para “estimular a visitação a instituições ligadas à cultura negra na Pequena África”. A flacidez das autoridades incentivou a ideia fixa da turma do turismo, de fazer shopping na região. A maluquice, por enquanto, não prosperou.

Na vida real longe dos delírios de burocratas, dá tristeza visitar o Cais do Valongo. As poucas placas não diferenciam o lugar de uma calçada meio diferente. Quem passa – pouca gente, na Região Portuária ainda precariamente habitada – parece não fazer ideia do que aconteceu ali.

Receba as colunas de Aydano André Motta no seu e-mail

Veja o que já enviamos
O Cais do Valongo: importância fundamental para o conhecimento da escravidão e o combate ao racismo. Foto Luiz Souza/NurPhoto/AFP

Perde-se (outra) oportunidade de espalhar um pouco de consciência para aplacar o racismo – este sim, bombando como sempre. Diante de uma sociedade crescentemente negacionista em relação à sua própria trajetória, poder mostrar ao mundo ponto tão explicativo da trágica – e formadora – história brasileira seria estratégico para fundar outro pensamento. Mas repetimos a sina de ter o mais difícil, e vacilar no mais fácil. (O Rio, em particular, é especialista no erro. Dá aula.)

Há conhecido exemplo mundial de como fazer: a Alemanha. Por lá, a sociedade não se cansa, das mais altas autoridades aos trabalhadores na base da pirâmide, da atitude de se desculpar com o mundo pelo nazismo. Espalham-se pelo país pelo menos 300 memorais, “para lembrar e não repetir o erro”, inclusive campos de concentração preservados em todo seu horror. E, raridade, a salvo do capitalismo: a visitação é invariavelmente gratuita, não se pode lucrar com tal lembrança.

No campo de Dachau, perto de Munique, pequeno museu guarda objetos e publicações que ajudaram a construir a consciência da intolerância. Charges de jornal dos anos 1920 e 1930 desenhavam “judeus espertos” surrupiando valores e bens de alemães com traços de bobos ingênuos (língua de fora, olhar perdido). O lugar foi inicialmente destino de prisioneiros políticos, mas, em condições horríveis subjugou judeus, ciganos, homossexuais e testemunhas de Jeová. Havia trabalho forçado, experimentos médicos antiéticos e extermínios, além de funcionar como centro de treinamento da SS, facção paramilitar do regime de Hitler. No portão, a frase que arrepia: “O trabalho liberta”.

Sachsenhausen, em Oranienburg, 30 km ao norte de Berlim, foi um dos primeiros e mais importantes campos de concentração, por servir como projeto-piloto de todo o projeto de extermínio nazista. A história está contada em áudio guias, com opção em português. Fundado em 1936, abrigou todos os considerados indesejáveis e promoveu trabalhos forçados que viraram mão de obra para diversas indústrias – muitas delas, marcas ativas e valorizadas até hoje no mercado. Houve, claro, experiências médicas cruéis e execuções. As câmaras de gás estão lá, numa memória contundente do horror.

Em Berlim, ainda está de pé um edifício neobarroco que abrigou a sede da Gestapo, a polícia secreta do Reich. Na parte ao ar livre, está a Topografia do Terror, detalhado painel multimídia que se aprofunda na barbárie alemã entre 1933 e 1945. Leva tempo para ver tudo – mas vale demais a pena.

Não há paralelo entre o nazismo e a escravidão, em duração, características, motivações, logística e, especialmente, consequências. Enquanto a Alemanha luta para impedir a volta de tão terrível momento da história – toureando pequenas vitórias eleitorais da extrema-direita, como a ocorrida domingo (2) –, por aqui, rola o teimoso sono em berço esplêndido. O Brasil sequer começou a tratar seu passado horroroso do jeito que deveria.

O descaso com o Cais do Valongo nos explica, tragicamente, como sociedade. Vergonha, muita vergonha.

Apoie o #Colabora

Queremos seguir apostando em grandes reportagens, mostrando o Brasil invisível, que se esconde atrás de suas mazelas. Contamos com você para seguir investindo em um jornalismo independente e de qualidade.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Compartilhe:

Sair da versão mobile