Matança oficial: agentes do estado foram responsáveis por 4 mil mortes em 2024

Levantamento da Rede de Observatórios de Segurança também revela racismo policial: negros representaram 86% das vítimas de operações

Por Oscar Valporto | ODS 16
Publicada em 6 de novembro de 2025 - 05:01
Tempo de leitura: 10 min

Protesto de parentes e vizinhos (quase todos negros) das vítimas da operação que matou 121 no Rio: letalidade policial e racismo estrutural (Foto: Fernando Frazão / Agência Brasil – 29/10/2025)

A sexta edição do relatório ‘Pele Alvo’ – levantamento da Rede de Observatórios de Segurança com foco do impacto do racismo nas ações policiais – já estava praticamente pronta quando o governo do Rio e sua polícia produziram 121 cadáveres na infame Operação Contenção. “Pele Alvo: crônicas de dor e luta é um tributo às vidas interrompidas e à resistência que se faz presente onde o Estado impõe o luto. Fazemos menção às 121 vítimas da Operação Contenção, nos Complexos da Penha e do Alemão, e todas as pessoas ceifadas pela letalidade policial”, acrescentaram os autores do relatório.

Os números de 2024 corroboram as denúncias feitas pela Rede desde 2019: no conjunto dos nove estados monitorados, foram registradas 4.068 mortes decorrentes de intervenção policial. “O recorte racial, quando informada a cor, demonstra o alvo da violência estatal: a população negra (pretos e pardos, segundo classificação do IBGE) representou 86,2% do total de fatalidades nas unidades federativas analisadas, somando 3.066 vítimas absolutas”, destaca o comunicado da Rede.

O relatório ‘Pele Alvo: crônicas de dor e luta’ analisou dados de 2024 em nove estados – Amazonas, Bahia, Ceará, Maranhã, Pará, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro e São Paulo – obtidos via Lei de Acesso à Informação (LAI) pelas organizações que integram a Rede de Observatórios de Segurança, projeto do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), do Rio.

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A disparidade racial é agravada pela faixa etária. Os jovens entre 18 e 29 anos constituíram 57,1% dos casos, totalizando 2.324 vítimas. Crianças e adolescentes, de 12 a 17 anos, foram 297 vítimas, além de um caso de 0 a 11 anos, significando alta de 22,1% em relação a 2023. “As desigualdades raciais atravessam a realidade brasileira e repousam em um lugar profundo, reverberando para todas as áreas da vida social. No campo da segurança pública, o racismo e a política de segurança se consolidaram como um par de atração magnética. A cada novo dado, o Brasil repete a mesma tragédia: o Estado mata com base em critérios raciais. Não se trata de desvio, mas de um padrão”, afirma Jonas Pacheco, coordenador de pesquisa da Rede de Observatórios.

Os pesquisadores apontam que, ao ponderar o número de negros mortos por 100 mil habitantes em relação à população branca, os dados são ainda mais preocupantes. Em todos os nove estados, pessoas negras têm mais chances de serem mortas pelas polícias do que brancas — mais destacadamente, nos estados da Bahia, Pará, Rio de Janeiro e São Paulo. “Não há mais espaço para negar a dimensão racial da violência de Estado. O relatório Pele Alvo é um chamado inequívoco para que governadores e o Governo Federal adotem um pacto pela vida, com metas ambiciosas e compromissos reais de responsabilização. A segurança pública deve ser para todos, não apenas para os não negros,” conclui a equipe de pesquisa da Rede.

Os dados do relatório também ajudam a confrontar o senso comum de que a população negra é mais vitimada apenas por ser majoritária. Embora os negros de fato constituam a maioria da população em todos os nove estados analisados – com exceção de São Paulo – a proporção de negros mortos é consideravelmente superior em relação à densidade demográfica. “Este cenário reitera que a letalidade policial no Brasil não é um fenômeno aleatório, mas uma manifestação direta do racismo estrutural que tem a vida da população negra como alvo preferencial”, destaca o documento.

Letalidade com viés racial: proporção de negros mortos é consideravelmente superior em relação à densidade demográfica (Gráfico: Cesec)

O Rio de Janeiro da ADPF das Favelas

O relatório revela que a a dinâmica das mortes por intervenção policial no Brasil apresentou novas configurações ao longo da série histórica, que vem desde 2019, de monitoramento pela Rede de Observatórios de Segurança. O Rio de Janeiro, que liderava o ranking da letalidade policial em 2019, passou a registrar seguidas quedas a partir das exigências estabelecidas durante a análise da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 635, conhecida como a ADPF das Favelas, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), desde 2020.

As operações no Rio não foram suspensas: desde junho de 2020, a polícia declarou ao Ministério Público – uma das primeiras determinações do ministro Edson Faccin, relator da ADPF, foi a comunicação antecipada de grandes intervenções nas comunidades – a realização de mais de 5.500 operações em favelas do Estado do Rio. Mas a matança foi diminuindo: nestes seis anos de monitoramento, o Rio registrou uma redução de 61,2% no número de mortes por intervenção de agentes do estado. O relatório divulgado nesta quinta (06/11) mostra que, em relação a 2023, o estado teve queda de 4,4% na letalidade policial; desde 2022, o Rio foi ultrapassado pela Bahia e deixou o topo do ranking – em 2024, foi ultrapassado também por São Paulo.

As seguidas reclamações do governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, e seus auxiliares na área de segurança pública contra a ADPF revelam apenas o desconforto com as restrições à matança como forma de combate ao crime. Apesar dos limites impostos pelas decisões do STF ao logo do processo, o governo do Rio e sua polícia promoveram, neste período, os três operações mais letais da violenta história do estado: 28 cadáveres na Favela do Jacarezinho, em 2021; 25 mortes na Vila Cruzeiro, em 2022; e o recorde brasileiro de 121 cadáveres – inclusive quatro policiais – na matança batizada de Operação Contenção.

Mortes por intervenção de agentes do estado desde 2019 em nove estados (Gráfico: Cesec)

Dados alarmantes na Bahia e em São Paulo

O relatório ‘Pele Alvo: crônicas de dor e luta’ revela que, pelo terceiro ano consecutivo, a Bahia mantém o título de polícia mais letal do Brasil (entre os nove estados analisados), com 1.556 mortes. No estado com maior proporção de população negra do país e governado pelo PT há quase duas décadas, 95,7% das vítimas com informação racial eram pessoas negras. A Bahia tem ainda a maior taxa de negros mortos por 100 mil habitantes em relação à população branca: pessoas negras têm 5,7 vezes mais chances de serem mortas pelas polícias em comparação com pessoas brancas.

O levantamento também chama a atenção do aumento da letalidade policial em São Paulo: o estado vem, desde 2022, “escalonando de forma preocupante o número de mortes decorrentes — alta 93,8% na letalidade policial em três anos”, destacam os autores. Em 2024, segundo ano sob a administração do governador Tarcísio de Freitas, São Paulo registrou o maior aumento na letalidade de um ano para o outro entre os nove estados — acréscimo de 59,2% nas mortes pelas polícias.

O relatório da Rede de Observatórios da Segurança reúne outros dados preocupantes Brasil a fora: o Ceará teve, em 2024, o maior número de mortes pela polícia desde 2019, com 189 vítimas — 79,3% eram negras; o Maranhão teve aumento de 22,6% nas mortes provocadas por policiais em um ano; com 597 mortes por intervenção de agentes do estado em 2024, o Pará registrou um aumento de 6,0% na série histórica.

Para mudar este cenário trágico, o relatório ‘Pele Alvo: crônicas de dor e luta’ apresenta recomendações urgentes: uso de tecnologia e transparência de dados (câmeras corporais, eliminação da rubrica “não informado” para a raça/cor das vítimas, divulgação pública dos protocolos de atuação das forças policiais); investimento em saúde mental e formação dos policiais; estabelecimento de novos modelos de planejamento, com metas e responsabilização.

A Rede de Observatórios da Segurança é integrada por organizações de nove estados: o Coletivo de Pesquisa e Extensão ILHARGAS – cidades, políticas e violências, da Universidade Federal do Amazonas (Ufam); a Iniciativa Negra Por Uma Nova Política de Drogas, da Bahia; o Laboratório de Estudos da Violência (LEV), do Ceará; a Rede de Estudos Periféricos (REP), do Maranhão; o Grupo de Pesquisa Mãe Crioula, do Pará; o Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (Gajop), de Pernambuco; o Núcleo de Pesquisas sobre Crianças, Adolescentes e Jovens (NUPEC), do Piauí; e o Núcleo de Estudos da Violência (NEV/USP), de São Paulo, além do o Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), do Rio, que coordena o projeto.

Oscar Valporto

Oscar Valporto é carioca e jornalista – carioca de mar e bar, de samba e futebol; jornalista, desde 1981, no Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, no Governo do Rio, no Viva Rio, no Comitê Olímpico Brasileiro. Voltou ao Rio, em 2016, após oito anos no Correio* (Salvador, Bahia), onde foi editor executivo e editor-chefe. Contribui com o #Colabora desde sua fundação e, desde 2019, é um dos editores do site onde também pública as crônicas #RioéRua, sobre suas andanças pela cidade

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