Claudio está sempre de óculos. Jamais sai de casa sem eles. Sempre com jeito compenetrado, a cabeça baixa, caminha até o ponto de ônibus, à espera da condução que o levará à faculdade, do outro lado da cidade, longe do subúrbio onde mora. Na rua, o celular fica no bolso, ainda são várias as prestações a pagar e não se pode dar mole. A companhia, assim, é o livro, que acentua o ar intelectual.
Leu essa? Racismo no cartão postal
Claudio cumprimenta os amigos de universidade com sorrisos e meneios de cabeça. Não faz o tipo eufórico, nem oferecido. Está no segundo ano, mas parece ainda em adaptação àquele mundo no qual é o primeiro de sua família a frequentar. Como os outros de origem semelhante, mantém-se concentrado no estudo, caminho para mudar o destino.
Claudio frequenta mais a biblioteca do que o pátio, mais os laboratórios do que os botequins, muito mais as aulas do que as festas. Chega cedo, fica até tarde e busca tirar o máximo dos professores. Tem pressa, porque sabe do atraso que o Brasil lhe impôs.
Claudio ajeita os óculos, limpando a lente com uma flanela que carrega na mochila. Tem cuidado com a armação azul, arredondada, como manda a moda atual. O acessório parece novinho, apesar de comprado há mais de dois anos. O cuidado de seu dono não deixa dúvida: é a parte mais importante da indumentária.
![Os óculos: proteção contra os estereótipos raciais da periferia. Foto Nathan Dumlao/Unsplash](https://projetocolabora.com.br/wp-content/uploads/2025/02/nathan-dumlao-vjhb4qpbgv4-unsplash-scaled.jpg)
Claudio volta para casa de ônibus e trem, afora as raras vezes que, cansado, pega a van. Evita, porque sabe quem é o dono do transporte clandestino, mas tolerado pelo estado inexistente. Quando cede, gasta metade do tempo. Uma beleza, mas melhor não.
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Veja o que já enviamosClaudio, vez ou outra, permite-se conversas com colegas. Ouve sobre viagens nas férias alheias – Noronha, Bonito, Bariloche – e se refugia num “não sei se vou estar no Rio”, quando perguntam se quer se juntar à galera que está comprando ingressos para um camarote “open bar, cheio de mordomia” na Sapucaí. Não é do samba, apesar dos bambas da família e da vizinhança. Falta tempo. Foco, foco.
Claudio, nessas conversas com os colegas de curso, mira, por trás dos óculos, o abismo social por escalar. Mas foge das divagações, que entende serem paralisantes. O Brasil é um grande o que tem para hoje; ele nunca se esquece desse aforismo particular. Seu plano de ascensão tem a universidade como alicerce – esta é a prioridade.
Claudio, quando chega a seu bairro, renova a profissão de fé no estudo, enquanto observa as muitas faces da miséria trágica que se abate sobre os seus. Cresceu ali, mas jamais perdeu a capacidade de se indignar. As lentes dos óculos refletem o desamparo do lixo espalhado, das valas de esgoto – criança, caçava rãs nos córregos fétidos –, da ocupação caótica, da desesperança.
Claudio lembra dos amigos de infância, vários mortos precocemente pela polícia que, vez ou outra, invade sua comunidade, montada no caveirão e atirando sem critério. Uns se foram no confronto, outros de bala perdida – outro dia mesmo, foi o filho de uma vizinha, que brincava na porta de casa. Nesse calor, não dá para ficar dentro de habitações tão pequenas e mal ventiladas; do lado de fora, tem os tiros da polícia e dos traficantes. Um mundo sem saída.
Claudio cumprimenta os conhecidos na boca. Nunca deixou de se chocar com as pistolas, depois as metralhadoras, agora os fuzis. Acabou de passar uma dupla de adolescentes numa moto, sem camisa nem capacete, o garupa empunhando a arma de guerra, gigante, imponente, fálica. Não faz sentido algo tão caro em lugar tão miserável, ele pensa, lembrando que os responsáveis por toda aquela catástrofe estão muito longe dali. Devem ser vizinhos dos seus colegas das férias em Noronha.
Claudio, enfim, chega em casa. Imediatamente, tira os óculos – com a visão perfeita, não precisa deles para enxergar. Mas usa por antiga orientação da mãe, com quem vive na casa pequena e calorenta. Desde criança, ela – mulher preta e periférica, que empenha a vida na dura luta pela sobrevivência dos seus – repete para o filho: ladrão não usa óculos. “Pode olhar os cadáveres: não tem nenhum de óculos”, teima, em seu mantra.
Claudio obedece. De fato, raramente é parado nas blitzes que encontra pelo caminho. Os policiais olham com desprezo, estudante esse aí, e mandam passar. Ele se revolta com a brutalidade no tratamento dos outros (todos sem óculos), mas segue em frente, vitorioso e derrotado ao mesmo tempo.
Claudio, por via das dúvidas, só bota o pé na rua de óculos. Virou escudo contra a brutalidade que martiriza corpos como o seu. E, apesar de não ter grau, ajuda a enxergar com perfeição a sociedade assentada apaticamente na espiral da violência – sem final visível.