Quando pinta em Copacabana
A caravana do Arará, do Caxangá, da Chatuba
A caravana do Irajá, o comboio da Penha
Não há barreira que retenha esses estranhos
Suburbanos tipo muçulmanos do Jacarezinho
(…)
Diz que malocam seus facões e adagas
Em sungas estufadas e calções disformes
É, diz que eles têm picas enormes
E seus sacos são granadas
Lá das quebradas da Maré
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Veja o que já enviamosCom negros torsos nus deixam em polvorosa
A gente ordeira e virtuosa que apela
Pra polícia despachar de volta
O populacho pra favela
Ou pra Benguela, ou pra Guiné
Sol, a culpa deve ser do sol
Que bate na moleira, o sol
Que estoura as veias, o suor
Que embaça os olhos e a razão
“Caravanas”, de Chico Buarque
O verão antecipado para a primavera pela crise climática encenou, novamente, a transformação do bairro mais famoso do Rio em “Faça a coisa certa”, filme lendário de Spike Lee sobre uma revolta contra a injustiça, num dia escaldante em Nova York. Mas aqui nos trópicos, por convicções, motivações e atitudes muito erradas, da sociedade assentada em racismo, violência e desigualdade.
Leu essa? O mapa dos tiroteios no Rio
No entardecer de Copacabana pós-praia, centenas de jovens (negros e negras, quase todos) superlotam os ônibus e alguns descem para assaltar à base de agressões. Idosos são cercados, espancados e saqueados. Celulares e câmeras de segurança documentam a violência obscena. A polícia não aparece nas imagens.
A maior vilania, no entanto, está na reação – uma milícia de moradores percorre o bairro, batendo em covardia ainda maior nos suspeitos (negros e negras, todos), que encontram pelo caminho. Nas redes sociais, integrantes do grupo avisam que vão perseverar na pancadaria, ignorando a lei. Num estado em desgoverno, a polícia mantém-se omissa, como sempre.
Chova ou faça sol, mormaço ou tempo nublado, a tormenta da intolerância grassa no Brasil. As reações à espiral de brutalidade clamam por mais crueldade, com requintes de perversão. Defendem desavergonhadamente a eliminação do alienígena, que, na mentalidade torta e superpopular, simplesmente não pode estar ali.
Tragicamente, é cacoete longevo, ligado à formação do Rio como ajuntamento urbano. O maior destino de africanos escravizados do mundo, em verdade, jamais alterou seu DNA. Sob a fantasia de alegria e permissividade, esconde a convicção da violência como modo de viver.
E fica, assim, parado eternamente no mesmo lugar. Não aprendeu a lição da chacina da Candelária, em julho de 1993, quando oito jovens, com idades entre 11 e 19 anos, em situação de rua, foram assassinados em frente à igreja mais famosa da cidade, no Centro. Morreram somente por estar ali, em banho de sangue que virou constrangimento planetário.
A elite da Zona Sul e da Barra, em especial, dobra a aposta sem pestanejar. Professa prece higienista, delirando que a barbárie serve de solução. Moradores da cidade contemporânea, com acesso a todo conhecimento, teimam em medidas antediluvianas e, para além de repulsivas, ineficazes. Vivem parados no tempo – do pior jeito.
Quatro décadas atrás, quando o então governador Leonel Brizola autorizou que ônibus cruzassem o Túnel Rebouças (sim, criança: a principal ligação Norte-Sul da cidade foi, por 16 anos, exclusiva dos carros da elite), os moradores da Zona Sul estrilaram, porque “a praia ficaria cheia de suburbanos”. Pipocaram pedidos por blitzes, fiscalizações reforço policial e outras formas de repressão.
De lá para cá, governantes flertaram com as medidas preconceituosas. A polícia serve, sempre, como agente do racismo de Estado, resoluta na defesa dos ricos e no ataque (à base de golpes de cassetete, spray de pimenta e congêneres) ao “populacho”, como identificado na magistral canção-denúncia de Chico Buarque.
O apartheid nunca arrefeceu. Em junho de 2005, “O Globo” publicou na primeira página foto de Berg Silva (1966-2022), na qual um policial militar chuta o rosto de um preso, imobilizado de bruços, numa calçada da Lagoa. Na cena, aparecem quatro suspeitos – todos pretos – de roubar o celular de um advogado, e o agente move o pé direito em direção à cabeça de um deles com chocante naturalidade.
A reportagem questionou a atitude – e o jornal foi soterrado por ataques de leitores, revoltados com o destaque negativo (e óbvio) à truculência do meganha. Naqueles dias de redes sociais ainda incipientes, foram “108 mensagens eletrônicas (…), praticamente todas criticando o fato de o jornal ter dado destaque negativo à atitude dos PMs”. Por telefone, foi de perder a conta: “chegaram dezenas” de reclamações.
O texto destaca o protesto “olho por olho, dente por dente” de um leitor: “O chute que o policial deu na cara de um deles foi pouco, se eu comparar com o que um desses ladrões de celular fez com minha esposa há seis meses (…), em Ipanema”. A própria vítima do crime da Lagoa ecoou o discurso: “(Os policiais) tinham que ser ríspidos. Não podiam passar a mão na cabeça dos ladrões”, aprovou o advogado.
Dezoito anos depois, o Rio está no mesmo atoleiro de violência e exclusão. Uma vítima dos “estranhos suburbanos tipo muçulmanos” de Copacabana pregou, em entrevista à TV, “mais preocupação com a natalidade”. Argumentou, com impressionante serenidade, que o Rio “não tem economia para esse tamanho de população”.
Aqui, mistura-se a discussão de políticas públicas, sociais ou de segurança, com os casos individuais. A fórmula não presta, por turbinar o extremismo e sua nefasta consequência prática, o extermínio. No assunto, aliás, o Brasil tem doutorado. Sob o sol, são assassinadas perto de 50 mil pessoas por ano (47.508 em 2022), mais de três em cada quatro (76,9%) pessoas negras. Noves fora a barbárie em escala industrial, não está mitigando a violência que tanto assusta a “gente ordeira e virtuosa” da canção de Chico.
Como nada jamais será por acaso, as ocorrências de Copacabana se dão a menos de um ano da próxima eleição municipal. A extrema-direita, ainda na vibe “cachorro que caiu da mudança” pela derrota de 2022, encontra no racismo e na intolerância terreno fértil para renascer, como típica erva daninha. E por falar em praga, não se pode esquecer: a terra carioca inventou Jair Bolsonaro como político.
Por todos os verões, outonos, invernos e primaveras, o filme aqui tem outro nome: “Faça a coisa (muito) errada”.