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A Xanadu do influencer

Em liberdade provisória, Sérgio Cabral faz política nas redes sociais, tentando apagar os muitos pecados, que renderam condenações de mais de 400 anos. E agora, será enredo no Carnaval de 2024

ODS 16 • Publicada em 21 de julho de 2023 - 09:38 • Atualizada em 21 de julho de 2023 - 17:09

As palavras se sucedem em ritmo pausado, emolduradas pela expressão serena, para compor a aparência de alguém com lugar de fala. A barba grisalha, minuciosamente por fazer, sugere experiência, sabedoria, humildade. A camiseta lisa vende desapego, despojamento. E olha que a forma perde longe do conteúdo, que descreve a Xanadu de obras e medidas sem equívocos nem pecados. Ali, nada está fora do lugar.

Mas cai quem quer – porque exige esquecer passado recente e trágico.

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Brota nas redes sociais penúltima atração de nosso eterno apocalipse político: Sérgio Cabral, em versão influencer. O ex-governador fluminense, sentenciado a mais de quatro séculos de cadeia em 23 processos, por comandar surrealista odisseia de corrupção, deixou a prisão em fevereiro e estrela vídeos em produção caudalosa.

Cabral, em versão influencer: autoexaltação na liberdade provisória. Reprodução do Instagram
Cabral, em versão influencer: autoexaltação na liberdade provisória. Reprodução do Instagram

A festa acontece no Instagram, onde o acervo audiovisual somava 61 obras até a sexta-feira (21). Com aguda pegada de coaching político, passeia por temas os mais variados – do ICMS verde ao prazer de viajar, da crise do Aeroporto Tom Jobim à Sala Cecília Meirelles, dos idosos à Lagoa de Araruama. Também dá dicas de livros como “Escravidão”, exposições como a de Frida Kahlo e declara amor pelo Vasco. Por fim, permite-se pedir o fim da polarização política. O oráculo digital ostenta fôlego infinito.

Por enquanto, não tem perigo – na rua (com tornozeleira eletrônica) desde fevereiro pelo direito de responder em liberdade à montanha de processos que enfrenta, Cabral está inelegível. Mas trabalha claramente pela anulação das ações judiciais. Enquanto a Justiça segue no costumeiro passo de cágado, reconstrói a trajetória política, torturando a realidade que atirou o Rio de Janeiro num buraco do qual o estado não sairá até pelo menos 2031, prazo do regime de recuperação fiscal concedido pelo governo federal.

Exatos 26.976 seguidores (em viés de alta) acompanhavam, até a manhã desta sexta (21), a autopromoção virtual. Está lá a seção “Rolê pelo Rio”, que, na estreia, em 15 de maio, apresentou Cabral travestido de guia turístico, diante da Estação Cidade Nova do metrô, nas franjas do Centro carioca. “Olha que barato, essa é uma estação integrada. Aproveitamos uma área pública e ela custou muito menos. Ainda pude inaugurar no meu primeiro governo”, autoelogia-se o influencer.

“Barato” e “metrô”, na saga do ex-governador, só convivem em roteiro de ficção, diante das conclusões do Tribunal de Contas do Estado. O dano aos cofres públicos equivale a 22% do total das obras – ou R$ 16,7 bilhões em valores atualizados. O Everest de dinheiro pode aumentar, nos processos ainda inconclusos.

Mas nenhum vídeo tem poder para tocar mais os corações fluminenses do que o último de outro programa, o “Fala, Cabral”. O protagonista discorre sobre segurança pública, concentrando-se nos avanços e garantias que teriam sido dados aos policiais, no tempo das UPPs. Sem citar números, garante que caíram homicídios, latrocínios, roubos a cargas, veículos, celulares. “Reduziu tudo”, conclui, eufórico. A cara parece nem coçar.

O conjunto da obra audiovisual desenha um político em explícita campanha. O Rio e o Brasil ainda estão a salvo, pela condição judicial do apenado. Mas a lavagem da imagem progride galopante. Seguindo a bula carioca, Sérgio Cabral será enredo no próximo Carnaval. A minúscula União Cruzmaltina, nascida de uma torcida organizada do Vasco, desfilará na Série Prata (terceira divisão do paticumbum) exaltando a trajetória do ex-governador.

“A intenção é destacar tudo de bom que ele já criou”, planeja Rodrigo Brandão, presidente da escola. “Conversamos por mais de três horas, e ele entendeu que a proposta da escola é destacar toda sua trajetória de vida, com seriedade e sem brincadeira”, relata o dirigente, atestando o aval do homenageado.

Tudo muito bom, tudo muito bem. Ex-queridinho da mídia carioca, Cabral dedica a liberdade provisória à reconstrução da imagem na rinha digital, o que é do jogo. O perigo mora em naturalizar o sentenciado personagem. Ele tem nada de pitoresco, brejeiro, ameno; tampouco seus movimentos são irrelevantes. O legado terrível que ele deixou precisa ser inesquecível.

Para não se repetir o erro cometido com certo capitão histérico, também tratado com desdém durante décadas. Até virar presidente e quase destruir o Brasil.

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