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A violência sem fim no país de olhos voluntariamente fechados

Sociedade insensível vira as costas para a espiral de brutalidade e afunda cada vez mais fundo no buraco da exclusão e do armamento desenfreado

ODS 10ODS 16 • Publicada em 18 de abril de 2025 - 06:01 • Atualizada em 18 de abril de 2025 - 09:48

Dez homens da lei – o Estado – passam hostis, nove deles empunhando aterrorizantes armas de imensa letalidade; quatro carregam um corpo envolto num saco preto; as vestimentas são de soldados camuflados para uma guerra. Passam pela viela de uma comunidade popular, que  apresenta mazelas compulsórias ao andar de baixo da sociedade: fios elétricos caóticos, emaranhados em risco flagrante; construções amontoadas, moradas de improviso. Num canto, para a ironia ocupar a vida real, uma bandeira do Brasil.

Leu essa? Faça a coisa errada em Copacabana

Nenhum meganha olha para os outros dois humanos da imagem: uma jovem espremida contra o muro, tentando liberar o caminho da brutalidade enquanto tapa os olhos de uma menina que, mochila às costas, veste uniforme escolar. Um átimo de sensibilidade que busca – em vão – estancar o trauma pela cena ao mesmo tempo banal e ultraviolenta.

A imagem, captada pela magistral Márcia Foletto, longeva colecionadora de joias do fotojornalismo, aconteceu na Ladeira dos Tabajaras, favela de Copacabana invadida pela polícia à caça dos suspeitos de matar o agente João Pedro Marquini, no fim de março. Primeira grande operação após o STF afrouxar a ADPF que tentava pôr freio à barafunda das invasões a territórios privatizados por criminosos, a ação espalhou pânico por pobres, ricos e remediados de dois bairros da Zona Sul (o Tabajaras também tem acessos por Botafogo).

A cena se deu quando Foletto e a repórter Bruna Martins subiam a entrada próxima ao Cemitério São João Batista, onde jazem ricos de muitas gerações (e alguns pobres). No saco preto, estava um dos cinco mortos decorrentes da operação, todos apontados, na narrativa oficial, como integrantes do tráfico local. O assassino do policial mesmo não estava – foi preso horas depois, num apartamento em Copacabana.

Operação na Ladeira dos Tabajaras: cinco mortos e pânico para a população de dois bairros cariocas. Reprodução da TV Globo

Outras crianças faveladas depararam-se com corpos sendo carregados, armas de guerra engatilhadas, suspeitos detidos, tiros disparados pelos dois lados da batalha. Normal, como ocorre há 40 anos – e continuará, pelos tempos afora – nas periferias do Rio. Em verdade, a imagem só impressiona os alienados à brutalidade cotidiana nesses territórios.

Flagrantes semelhantes repetem-se há décadas, no enfrentamento estéril, que mata inocentes, massacra policiais, inviabiliza o cotidiano, espalha medo pela população e drena o dinheiro público – tudo para nada. A escalada de violência nunca arrefeceu; ao contrário, se alimenta do acirramento de autoridades e marginais, empenhados na vitória impossível a uns e outros, todos perdedores.

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Muitos conhecedores do assunto assumem, sem rodeios, que operações como a do Tabajaras são inúteis como enxugar gelo. Quando a polícia se vai, tudo volta a ser exatamente como antes, eventualmente com novos comandantes do território, que repetem o modelo, numa ciranda infinita. Os homens da lei – e a sociedade – não ganham uma vez sequer.

Sobram as cenas captadas por fotojornalistas sensíveis. Em 2007, Marcos Tristão documentou o rosto tomado de dor e lágrimas, os olhos vermelhos de tanto chorar, da empregada doméstica Edna Ezequiel, mãe da menina Alana, 12 anos, morta por bala perdida durante tiroteio no Morro dos Macacos. No braço que segura a cabeça, uma pulseira plástica verde-amarela exibe pequena bandeira do Brasil.

Em 2018, Antônio Scorza fotografou Bruna da Silva estendendo o uniforme rasgado e manchado de sangue do filho, Marcos Vinicius da Silva, 14 anos, baleado na barriga a caminho da escola, no Complexo da Maré. Naquela manhã, operação na favela teve o helicóptero da polícia – Caveirão Aéreo, na definição macabra dos alvos – atirando do céu em direção à comunidade caótica, onde milhares de brasileiros (sobre)vivem apertados, uma barbaridade absoluta, agora de volta. Bruna transformou os andrajos ensanguentados do filho assassinado em símbolo de seu ativismo. E ficou com a dor.

Rigorosamente todas as milhares de tragédias têm como destino a indiferença da sociedade. Ninguém liga a mínima para o que acontece do seu lado, ali na frente ou lá longe. Crianças mortas por bala perdida, trabalhadores alvejados por ficar no meio do tiroteio, policiais que deixam famílias órfãs – e mesmo marginais executados num país onde não há pena de morte. Nada comove mais.

Enquanto isso, os espertos turbinam o discurso da brutalidade, do armamento sem freio, do extermínio como tara. E o banho de sangue vira ativo eleitoral. Policiais da ativa e aposentados trocam soluções fáceis (e inviáveis) por montanhas de voto; prefeitos que sonham com cargos mais altos engraçam-se a armar guardas, ou emulam o discurso fanfarrão do bandido bom é bandido morto.

Só crianças deveriam ter direito a fechar os olhos. Mas são os marmanjos que menos enxergam a urgência da empatia e da busca por soluções coletivas, na sociedade sem horizonte nem piedade.

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