Dava para cortar com faca o silêncio na pequena sala de hospital, onde homens grisalhos conjugavam ansiedade e esperança, à espera de exames cardíacos. No espaço de cadeiras estrategicamente confortáveis, a maioria permanecia de cabeça baixa, em contrição pelo diagnóstico sonhado. Até um senhor idoso, de camisa social amarela, sorrir para o paciente à sua frente: “Tudo bem no seu exame?”
“Até aqui, sim”, devolveu o interlocutor (um pouco) mais jovem, sentindo certo alívio pela cortesia. Chamado primeiro, o autor da pergunta se foi em direção ao tomógrafo e o outro interrompeu o passo apressado de uma das sorridentes enfermeiras, em busca de saber quem era o outro: “Doutor Jacob. Pessoa maravilhosa”, elogiou ela.
Ali, no hospital de privilegiados (todos brancos, previsivelmente), em posição inversa à ocupada por uma vida inteira, estava o cirurgião Jacob Kligerman, 84 anos, dos grandes especialistas do país em intervenções de cabeça e pescoço. Ex-diretor do Instituto Nacional do Câncer, liderou, quarto de século atrás, cruzada que removeu as propagandas de cigarro da mídia brasileira. Milhares de vidas foram salvas pela pertinente vilanização do tabaco, que reduziu drasticamente o número de fumantes por aqui.
O médico teve influência decisiva na lei de autoria do então ministro da Saúde, José Serra, para banir os reclames e os patrocínios a eventos culturais e esportivos, que embrulhavam em imagem jovial as marcas de cigarro. Encerrou-se o tempo de Hollywood Rock, Free Jazz Festival e propagandas com músicas icônicas, estreladas por artistas populares. Pesquisas da época apontavam o crescimento do consumo entre jovens do produto, associado fortemente a câncer de pulmão (90% dos casos), enfisema pulmonar (80%), derrame cerebral (40%) e infarto do miocárdio (25%).
Apesar da montanha de evidências científicas, a batalha da proibição foi dura. A zilionária indústria do tabaco tinha bancada no Congresso (como a bala, a bíblia e o agronegócio hoje), que invocava a liberdade de expressão para manter os anúncios. “Esta questão envolve uma droga que mata. É no mínimo hipocrisia falar em democracia”, criticou Kligerman em entrevista ao colunista, em outubro de 2000. “Estávamos aqui em 1964 lutando contra a ditadura, e não vi ninguém do setor na rua, preso ou torturado, tampouco defendendo a liberdade de expressão”, continuou, evocando a participação no movimento estudantil sufocada pela repressão.
Na UNE, ficou amigo de Serra e, restabelecida a democracia, o assessorou no ministério, com inquebrável certeza. “Inglaterra, Noruega e Finlândia aprovaram leis restritivas e diminuíram em até 35% o consumo”, contabilizava, apontando a prevenção como melhor caminho contra o câncer. “O ministério para o qual trabalho é da Saúde, não da doença”.
Passou o tempo e a cruzada contra o tabagismo consolidou-se como raro momento civilizatório da sociedade brasileira, viciada em atrasos variados. Pesquisa da Anvisa de 2013 aferiu que 33% dos fumantes brasileiros abandonaram o vício com o fim da propaganda.
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Veja o que já enviamos(O Brasil se encarregou de inventar novos formatos para o mercado, com cigarros clandestinos, mais recente empreendimento do crime organizado carioca, e eletrônicos, altamente viciantes, que circulam até entre crianças e adolescentes nas escolas. Nossa inesgotável capacidade para inventar tragédias.)
E por que exumar história tão antiga, e superada? Ora, a ação antitabaco serve de lição para a estúpida guerra às drogas, que sangra corpos negros pelas periferias brasileiras. Nos últimos dois dias, o Complexo de Favelas da Maré, no Rio, teve, de novo, o cotidiano varado por tiroteios e todo o terror dos confrontos entre policiais e traficantes. Cinco pessoas morreram, aulas foram suspensas, cidadãos não conseguiram trabalhar e as comunidades ficaram reféns da violência dos fuzis. Para nada – há mais de 50 anos, tudo continua do mesmo trágico jeito nos territórios dominados pelos marginais.
Cocaína, maconha e crack são como o cigarro – drogas altamente viciantes, com a burocrática diferença do tratamento da legislação. Por isso, Kligerman jamais defendeu a proibição “A nicotina atinge o mesmo receptor cerebral da cocaína. Para alguns, a sensação de prazer é enorme, não tê-la seria insanidade”, ensinava, à época. “Não tenho que punir o fumante, nem categorizá-lo psicologicamente. É um dilema de cada um”.
Como no caso das drogas proscritas. Combatê-las à bala serve para nada. “O Brasil reduziu usuários de tabaco sem dar um único tiro. Nos anos 1990, estaríamos aqui, nessa sessão, com pessoas fumando. Hoje, no boteco mais fim de rua, qualquer um pede licença e vai acender o cigarro do lado de fora. Fizemos isso com educação, legislação, controle, monitoramento e debate sincero”, constatou o deputado distrital Max Maciel (PSOL-DF), em brilhante discurso reproduzido pelo podcast Medo e Delírio em Brasília.
O parlamentar comentou que o Brasil parece decidido – como em vários outros temas – a ser o último país sobre a Terra a tomar decisão sensata sobre a questão. A polícia transforma-se no braço armado da violência mais brutal, que mata corpos negros, homens, mulheres, crianças, num permanente banho de sangue nas periferias. “Quem quer sabe onde compra, e consegue facilmente. A droga já está legalizada; queremos descriminalizar porque sabemos o território e o CEP que são criminalizados”, apontou Maciel.
E sai caro. Estudo do Cesec (Centro de Estudos de Segurança e Cidadania), com dados de 2017, estima em R$ 1,2 bilhão o custo anual da odisseia de incursões policiais, tiros, avanços, recuos e muitas, muitas vidas perdidas no Rio de Janeiro. Em São Paulo, bate nos R$ 4 bilhões. Em todos os estados, as eleições para governador (o chefe das forças de segurança) viraram uma disputa entre promessas cada vez mais sanguinárias dos homens da lei. Um monocórdio “Vou dar mais tiro do que ele. Vote em mim”.
“Todos os países que tentaram a guerra às drogas viram que deu muito ruim e voltaram atrás. Nos EUA, querem botar a maconha na categoria dos anabolizantes”, informou o deputado distrital, em seu discurso. Ele lembrou ainda como o imobilismo turbina a superlotação nas cadeias – o Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo, cerca de 900 mil pessoas, multidão que cresceu 44% em uma década. “A Espanha estabeleceu em 100 gramas de maconha o limite para usuários. Se usássemos aqui, mais de 60% dos condenados por tráfico seriam soltos”, calculou. “Seria muito menos ônus para o sistema prisional”. Na cadeia se estruturam a paulista PCC e a carioca CV, maiores facções criminosas do país, que prosperam justamente no lucrativo negócio do tráfico.
Mas por aqui imperam a ostentação burra e sangrenta do fuzil, a parolagem dos governantes, a histeria da mídia e a corrupção policial. No país que guarda na própria história ação realmente eficaz contra uma droga mortal, é só querer aprender.