Um atentado ainda mais cruel

Além de alimentar a extrema-direita, ataque contra mercado em Berlim destrói um dos símbolos do Natal germânico

Por Renata Malkes | ODS 11 • Publicada em 20 de dezembro de 2016 - 17:29 • Atualizada em 21 de dezembro de 2016 - 12:06

Policial caminha pelo mercado de Natal onde um atentado deixou 12 mortos e 48 feridos. Foto de Tobias Schwarz/AFP
Policial caminha pelo mercado de Natal onde um atentado deixou 12 mortos e 48 feridos. Foto de Tobias Schwarz/AFP
Policial caminha pelo mercado de Natal onde um atentado deixou 12 mortos e 48 feridos. Foto de Tobias Schwarz/AFP

(Berlim) – Há duas coisas com as quais a Alemanha sonha durante todo o ano: o calor do (tímido) verão e as luzes do Weihnachtsmarkt – o mercado de Natal, uma das maiores tradições do país, mantida desde a Idade Média. É ali, nessas feiras de rua, realizadas nas quatro semanas que antecedem o Natal, que milhares de alemães, com o nariz vermelho, congelado, e os corpos frios, buscam vinho quente e algum calor humano para afastar a melancolia e suportar os meses do rigoroso inverno do Hemisfério Norte. Por isso, quando um caminhão desgovernado se lançou na noite de segunda-feira contra a multidão que passeava em uma das 70 feiras natalinas da capital alemã, o golpe foi muito duro.

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Vamos encontrar a força para a vida na Alemanha, para a vida que queremos viver aqui, livres, juntos uns com os outros e abertos

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A dor e a insegurança provocadas pelo terrorismo não podem ser mensuradas ou relativizadas, claro. Mas, além de 12 mortos, 48 feridos e milhares de moradores e turistas incrédulos, o ataque contra a cosmopolita Berlim deixa marcas profundas na alma germânica pelo seu teor simbólico. Para os alemães, os mercados de Natal são mais do que simples tradição – mas uma espécie de terapia, uma catarse coletiva, um mecanismo de sobrevivência humana às baixíssimas temperaturas e à escuridão do inverno.

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Em todo o país, há cerca de 600 mercados de Natal espalhados por diversas cidades e visitados por milhões de pessoas todos os anos. E enquanto despencam as temperaturas registradas pelo termômetro, é tempo de confraternização. Parece simplesmente terapêutico passear entre as barraquinhas de iluminação farta e brilhante durante o mês de dezembro, quando se tem, em média, apenas uma hora diária de sol. As noites parecem interminavelmente longas. O dia amanhece preguiçoso, por volta das 8h e, em torno das 16h, volta-se à escuridão. É um momento onde o país parece mais triste. O céu parece refém de bem mais que 50 tons de cinza. Nas farmácias, cresce a procura por cápsulas de vitamina D para suprir a ausência de raios de sol, numa tentativa desesperada de recuperar a energia e o bom humor abduzidos pelo frio e, sobretudo, pela escassez de luz.

Mulher chora pelas vítimas do atentado em Berlim. Foto Odd Andersen/AFP

Quando tudo parece melancolia, começam os mercados natalinos. Não há quem não encare as baixas temperaturas para passear em meio ao cheiro de canela, anis e outras bebidas doces. As ruas, até então praticamente desertas, enchem-se novamente de vida. Entre as tradições mais fortes, está a degustação de (muitas) canecas de Glühwein, um vinho quente preparado com dezenas de especiarias. Salsichas, embutidos e queijos fazem a festa de todos os gostos, assim como os famosos Lebkuchen (biscoitos de especiarias), Spekulatius (outro tipo de biscoitinho com a forma de animais ou objetos), castanhas de todos os tipos e os Weihnachtsstollen, uma espécie de panetone de frutas.

Além da comilança e da oferta de artesanato e presentes feitos à mão, há brinquedos e contam-se histórias de Natal para as crianças. Muitas vezes, músicos fazem performances ao vivo. O repertório de clássicos natalinos mais parece trilha sonora de filme de conto de fadas. O clima de Natal se faz sentir verdadeiramente. Renovam-se as esperanças e os espíritos de alemães, turistas e refugiados. Brancos e negros. Cristãos, judeus, muçulmanos e ateus.

E foram exatamente essas esperanças, tão importantes para os alemães, golpeadas pelo atentado em Berlim. O remédio antimelancolia virou veneno. A sombra do terror devolveu o país, de certa forma, às trevas do gélido inverno e de um intenso debate político em torno dos quase um milhão de refugiados recebidos na Alemanha, em um momento onde a extrema-direita avança e promete abocanhar, com força, boa parte das cadeiras do Parlamento nas eleições do ano que vem.

[g1_quote author_name=”Farid” author_description=”Jovem sírio que vive em Berlim” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]

Foi o pior que poderia acontecer. Quando as coisas começam a se acalmar, acontece um crime como este, e as pessoas voltam a nos olhar com desconfiança

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A chanceler alemã, Angela Merkel, criticada por sua política de recepção a refugiados, apressou-se em condenar o crime e esforçou-se para acalmar a população. “Vamos encontrar a força para a vida na Alemanha, para a vida que queremos viver aqui, livres, juntos uns com os outros e abertos”, declarou.

Segundo a polícia, o motorista do caminhão era um refugiado de origem paquistanesa. Porém, como de praxe, a imprensa local, cautelosa ao extremo, ainda não fala abertamente em terrorismo – embora as investigações sigam a partir desta hipótese. Se o impacto psicológico imediato foi profundo na psiquê germânica, o político, porém, é ainda imensurável. A xenofobia segue à espreita, desafiando um país ainda marcado pelo horror da Segunda Guerra Mundial.

“Foi o pior que poderia acontecer. Quando as coisas começam a se acalmar, acontece um crime como este, e as pessoas voltam a nos olhar com desconfiança”, resumiu Farid, um jovem sírio de 23 anos, morador da cidade de Magdeburg, no Leste alemão.

Há um ano na Alemanha, Farid deixou Aleppo com a mãe e a irmã, de 20 anos, em busca de segurança na Europa. Filho de comerciantes cristãos, fez a perigosa travessia de barco pelo Mediterrâneo e cruzou diversos países europeus à pé até conseguir alcançar o país. Estudante, ele já tem boas noções do idioma alemão e faz um preparatório para tentar uma vaga no curso de Psicologia na universidade no próximo ano. Passear pelo mercado de Natal é um de seus passatempos preferidos nas últimas semanas. Ou era.

“O mercado de Natal me fez sentir integrado pela primeira vez. Na Síria comemorávamos de maneira discreta. Aqui eu me e minha família nos sentimos em casa. Vejo que meus amigos sírios muçulmanos se sentiram em casa, de repente. Fazemos piadas de já adoramos o inverno! Como estamos todos usando gorros e cachecóis por causa do frio, ninguém percebe nosso tom de pele e ninguém nota que as mulheres usam um véu. Somos apenas gente no meio da multidão. Rezo para que não seja um refugiado o autor deste ataque”, disse o jovem.

Os alemães, assustados e cada vez mais melancólicos, também.

Imagem do caminhão usado no ato que destruiu um dos mercados de Natal de Berlim. Foto de Tobias Schwarz
Renata Malkes

Carioca nada da gema, na Alemanha desde 2016. Mestre em Estudos de Paz e Guerra pela Universidade de Magdeburg. Jornalista, inconformista e flamenguista. Mochileira e cervejeira. Ex-correspondente do jornal O Globo no Oriente Médio e da alemã Deutsche Welle no Brasil. Contadora de 'causos', mantém as antenas ligadas em ciência, direitos humanos e política internacional.

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