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Tragédia gaúcha ensina: capitalismo é o veneno que potencializa a crise climática

Ruiu o individualismo no qual a humanidade está assentada há séculos. O planeta mostra: terá que ser de outro jeito

ODS 11ODS 13 • Publicada em 17 de maio de 2024 - 15:30 • Atualizada em 24 de maio de 2024 - 09:30

Trabalho de resgate na Porto Alegre alagada: estudo aponta aumento em pelo menos 15% das chuvas na região, em comparação com o passado por conta das mudanças climáticas (Foto: Anselmo Cunha / AFP)
Trabalho de resgate na Porto Alegre alagada: estudo aponta aumento em pelo menos 15% das chuvas na região, em comparação com o passado por conta das mudanças climáticas (Foto: Anselmo Cunha / AFP)

O capitalismo encontrou seu adversário letal – e isso não é necessariamente boa notícia. Na contundência de enchentes, secas, desabamentos, mortes, destruição, a crise climática aponta que o caminho da concentração de riqueza, do poder desenfreado do capital, da redução do Estado, da ganância e do individualismo não tem saída. Mas nem pense em festejar, nem sonhar com uma era de fraternidade – nesta briga do mar contra o rochedo, os humanos somos os mariscos.

Leu essa: A cobertura do #Colabora sobre a tragédia no Sul

A tragédia no Rio Grande do Sul é apenas a mais recente, a demonstrar, com a força das águas que multiplicam cenários apocalípticos, não haver solução, afora um jeito novo de viver. Renúncia, consciência, coletividade, modéstia, generosidade, determinação, resiliência, espírito público viraram pendores essenciais para a humanidade ter alguma chance, diante do quadro trágico que ela mesma pintou.

As centenas de mortos e a devastação de boa parte da terra gaúcha ratificam que o modelo no qual a humanidade está assentada ruiu. Passou da hora de repensar por inteiro o modo de vida contemporâneo. Como aponta o hit de Lulu Santos e Nelson Motta, “nada do que foi será, de novo do jeito que já foi um dia”. Enquanto a espécie dominante não entender isso, o Brasil e o planeta correm risco crescente de virar um grande Rio Grande do Sul.

O capitalismo, tão presente na calmaria, se esvanece justamente na hora do socorro e da reconstrução, que fica toda com o poder público. Agora mesmo, o governo brasileiro começou a despejar centenas de bilhões para salvar desabrigados e reconstruir o estado hoje debaixo d’água. Algumas empresas e associações se engajam, a sociedade se mobiliza, mas a maior parte (com larga margem) fica mesmo para a União, com o dinheiro dos impostos.

Desmorona toda a parolagem da ineficiência estatal, dissolve-se o conceito farialimer da autorregulação, sucumbe o tal poder do mercado. Sem Estado, não dá nem para começar a conversa. Quando mais acentuada é a hecatombe, mais importante são governos e instituições públicas. Outro exemplo recente foi o SUS e as milhares de vidas salvas na pandemia (apesar da sabotagem hedionda dos então governantes).

E olha que a tragédia sulista teve cúmplices decisivos entre os poderosos regionais. O governador tucano Eduardo Leite, o prefeito Sebastião Melo (MDB, mas bolsonarista até a alma) e as casas legislativas do estado e das cidades, além da bancada federal gaúcha, têm os mortos e a destruição tatuados em suas biografias. Carregarão para sempre a culpa de ter atuado contra o meio ambiente e, assim, vitaminado a hecatombe.

O governador Eduardo Leite e o prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo, em coletiva sobre as chuvas no Sul: gestores e parlamentares também são sócios do desastre climático (Foto: Reprodução)

Leite se transformou num zumbi político. Vaga, ensaiando, a essa altura do campeonato, posar de oposição ao governo Lula, enquanto tropeça seguidas vezes nos próprios movimentos – do pix privado ao pedido para diminuir as doações, da contrariedade contida diante da resoluta ação federal ao agradecimentos às marqueteiras antenas de Elon Musk. Complemento tristemente coerente com a desconstrução da proteção pública ao meio ambiente. Na contramão da parcela sensata dos governantes, ele ainda acha que moderno é se omitir.

O prefeito não cuidou de equipamentos essenciais, como as comportas do Rio Guaíba, que protegem Porto Alegre. Além disso, investiu um total de zero reais – nem um centavinho sequer – em prevenção contra as enchentes na capital. Tampouco aprendeu a lição mesmo com os aguaceiros do ano passado, quando as barreiras também falharam. Descuidou do saneamento, abandonou sistemas de redes pluviais, ignorou a limpeza de rios e galerias.

Vereadores, deputados estaduais e federais atuaram para desidratar verbas destinadas à proteção, fragilizar Unidades de Conservação, permitir o avanço destruidor do agronegócio, da habitação desordenada e da especulação imobiliária. Ou, como ensina o melhor meme produzido na tragédia, “não é hora de apontar os culpados. Assinado: os culpados”.

E daqui a pouco, vem aí uma oportunidade para o detonador da mudança: a eleição. Na mudança do modo de vida em direção da sobrevivência, o voto tem valor inestimável. Só que precisa priorizar o meio ambiente na hora de apertar os botões da urna. A súcia devastadora – como os parlamentares ainda defendendo a derrubada de árvores em nome de um progresso com cara, jeito e fedor de atraso – tem de ser varrida do mapa político.

Nessa, o governo Lula também está devendo. Mesmo diante de todas as evidências, o Ministério do Meio Ambiente segue no segundo escalão, em relação à Fazenda, por exemplo. Os afagos ao agronegócio e o apego a barbaridades como a exploração de petróleo na Foz do Amazonas – que encontra na nova presidente da Petrobras, Magda Chambriard, uma inacreditável adepta – evidenciam o desprezo à gravidade do problema.

A tragédia gaúcha, com seus mortos e sua devastação, merece servir, ao menos, de alerta definitivo. Sem desembarcar das (incontáveis) mazelas do capitalismo, não haverá saída possível.

*****

Aliás, passou da hora até de mudar o nome do fenômeno. “Crise climática” transmite a falsa ideia de transitoriedade, como se o problema fosse magicamente passar. Prescreveu. “Revolução climática” ou “nova realidade climática” talvez sejam mais eficientes para transmitir a necessária – e dramaticamente urgente – mensagem.

Como se diz hoje em dia, pega a visão.

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