Muito antes de ser feriado, 23 de abril já estava no calendário dos cariocas. Muitos, de todas as devoções, já participavam das homenagens a São Jorge, santo até mais popular por aqui do que São Sebastião, padroeiro da cidade, e associado pelo nosso sincretismo a Ogum, na umbanda e no candomblé. Outros cariocas – às vezes, os mesmos – aproveitavam os shows do Dia Nacional do Choro, gênero musical nascido no Rio de Janeiro, como também aqui nasceu o responsável pela data ser comemorada em 23 de abril: o maestro (compositor, arranjador, flautista, saxofonista) Pixinguinha.
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Em abril de 2024, este +RioéRua foi inspirado por São Jorge: uma amiga devota estava precisando das bênçãos do santo e, mesmo o colunista sendo uma pessoa de pouca fé, participei da festa: entrei na Igreja de São Jorge, no Centro do Rio e toquei na imagem; do lado de fora, acompanhei as bênçãos dos sacerdotes das religiões de matrizes africanas aos que homenageavam Ogum, orixá que protege e abre caminhos. Não sei a quem o santo atendeu – devem ter sido muitos pedidos – ou se teve intervenção também dos orixás: neste dia 23, estaremos com a amiga devota para celebrar as bênçãos recebidas e as coisas boas da vida.

Mas, em 2025, a celebração aqui vai ser para o choro e, muito especialmente, para sua maior personalidade: desde o começo do ano, o colunista passa todas as semanas pela estátua de Pixinguinha, na Travessa do Ouvidor, a caminho da Casa do Pandeiro, onde tenta, ainda sem sucesso, aprender a tocar minimamente o instrumento. A estátua e a casa convivem nesta pequena travessa no Centro do Rio por coincidência, mas o pandeiro foi o primeiro instrumento de percussão a ser incorporado ao choro, gênero criado por músicos negros, que aprenderam a tocar instrumentos e ritmos trazidos pelos europeus, e foram adicionando e misturando a musicalidade de suas origens africanas. O choro nascido no Rio de Janeiro na segunda metade do século 19 era tocado, inicialmente, por grupos com instrumentos de sopro e cordas. Depois da virada do século, contudo, não havia conjunto de choro sem um pandeiro.
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Veja o que já enviamosComo o gênero musical, Pixinguinha nasceu no Rio de Janeiro. E não podia ser mais carioca: Alfredo da Rocha Vianna Filho chegou ao mundo, em 1897, no bairro de Piedade, na Zona Norte do Rio. Criança, foi morar no Catumbi, também na Zona Norte, numa ladeira que dava em Santa Teresa. Jovem músico, de algum sucesso, alugou uma casa em Olaria. Casado com Betty (Albertina Nunes Pereira), pai de um filho (Alfredo da Rocha Vianna Neto), comprou casa de dois andares na pequena rua Belarmino Barreto, em Ramos, em 1939, onde morou até 1969, quando, em dificuldades financeiras, mudou-se para Jacarepaguá. Já morava em Inhaúma, no Conjunto Residencial dos Músicos, quando ficou viúvo em 1972.
Se morou quase sempre na Zona Norte, Pixinguinha passou boa parte da vida no Centro do Rio, profissional da música desde a adolescência. Ganhou a primeira flauta do pai, talentoso músico mas amador, com 11 anos, mas, antes, já tocava violão e cavaquinho. Aprimorou-se na flauta com Irineu Batina, diretor de harmonia do rancho carnavalesco Filhas da Jardineira, com sede perto da Central do Brasil – com 15 anos, Pixinguinha já era o flautista da orquestra do rancho, onde conheceu Donga (Ernesto dos Santos) e João da Bahiana (João Machado Guedes). Com sua flauta, o adolescente tocou em grupos na choperia La Concha, na Lapa, no Cabaré Cassino; na Rua dos Arcos, também na Lapa; na boate O Ponto, na Praça Tiradentes, e no Teatro Rio Branco, na Rua Visconde do Rio Branco, no Centro.
Pixinguinha tocava e compunha – polcas, maxixes, sambas mas, principalmente, choros. E tinha um raro talento para os arranjos. Na década de 1920, o maestro fez sucesso, liderando os Oito Batutas, grupo de maioria negra, que, além de lotar as casas no Rio de Janeiro, excursionou pelo Brasil e também fez temporadas na França e na Argentina. Com a indústria fonográfica avançando, as composições instrumentais de Pixinguinha começaram a ser gravadas. Em 1929, foi contratado como arranjador principal da RCA Victor, uma das maiores gravadoras do país: seus arranjos e orquestrações são considerados um marco na música brasileira. “Pixinguinha abrasileirou as orquestrações de forma tão nítida e radical que se pode dizer, sem qualquer medo de errar, que foi ele o grande pioneiro da orquestração para a música popular brasileira. A canção carnavalesca deve a ele uma boa parcela do seu êxito, ao escrever arranjos com destacada participação da orquestra”, escreveu o jornalista e pesquisador Sérgio Cabral na biografia “Pixinguinha, vida e obra’.
Este livro de Cabral e a biografia escrita pelos pesquisadores Marília Trindade Barboza e Arthur Loureiro de Oliveira Filho – ‘Pixinguinha, filho de Ogum bexiguento’ – me dispensam de escrever mais sobre o maestro, bem como o site dedicado a ele pelo Instituto Moreira Salles, que abriga o acervo pessoal do maior dos chorões. As mais de 400 gravações de Carinhoso, sua obra mais popular, bastam para deixá-lo no lugar que merece na história do choro e da MPB. O choro instrumental Carinhoso saiu em disco pela primeira vez em 1928, numa gravação da Orquestra Típica Pixinguinha-Donga. Mas só faria sucesso em 1937, gravado por Orlando Silva, com letra de João de Barro – e viraria o fenômeno que atravessa gerações.
Mas este #RioéRua precisa voltar à Travessa do Ouvidor. Na rotina do maestro, às casas noturnas e aos estúdios das gravadoras, foram incorporadas em seguida às emissoras de rádio, mania nacional a partir de meados dos anos 1930 – Pixinguinha, como arranjador, músico e apresentador, trabalhou nas rádios Transmissora (da RCA), Mayrink Veiga, Nacional, Tupi. Os estúdios – das gravadoras e das rádios – estavam concentrados no Centro do Rio e foi lá que o maestro adotou seu novo ‘escritório’ – o bar Gouveia (ou Whiskeria Gouveia), ali na travessa, onde passou a bater ponto de segunda a sexta, antes de qualquer compromisso profissional. “Fui tomar um negócio e fui ficando acostumado, porque não gosto de ficar mudando de ponto”, contou o próprio aos autores de ‘Pixinguinha, filho de Ogum bexiguento’.
Mesmo se estivesse sem trabalhar, o maestro saía de casa na Zona Norte para ir ao bar onde os amigos sempre o procuravam. Os boêmios, em geral, são assim: fieis aos seus bares de estimação, onde são conhecidos pelo nome e tratados com deferência. No Gouveia, Pixinguinha passou a ter uma mesa cativa, inaugurada com festa e guardada para ele com zelo pelos garçons.
Essa alma boêmia também se refletia perto de casa. Já idoso, ia com a mulher Betty todos os fins de semana ao bar inaugurado a poucos metros de sua casa em Olaria – que se chamava São Jorge, hoje Bar da Portuguesa. Quando mudou-se para Inhaúma, batia ponto na Confeitaria Deise, no Conjunto dos Músicos – também no final de semana porque, de segunda a sexta, ia mesmo para o Gouveia. Todo esse apego naturalmente não fez bem à saúde: os biógrafos garantem que Pixinguinha era alcoólatra e sofria com tremores relacionados ao consumo excessivo de álcool que fizeram, inclusive, que ele trocasse a flauta pelo saxofone.
Num sábado, 17 de fevereiro, duas semanas antes do Carnaval de 1973, Pixinguinha recebeu o poeta, produtor e parceiro Hermínio Bello de Carvalho e outros dois amigos no apartamento em Inhaúma. Depois, foi para Ipanema onde seria padrinho do filho de um amigo: morreu, de infarto, à beira do altar da Igreja Nossa Senhora da Paz. A notícia alcançou a Banda de Ipanema, que faz seu desfile pré-carnavalesco sempre nessa data: o desfile terminou em frente à igreja, com foliões – entre eles, muitos amigos de Pixinguinha – chorando. Uma multidão foi ao enterro no Cemitério do Inhaúma e cantou Carinhoso em coro na despedida.
No Rio, a imagem do carioca Pixinguinha está imortalizada na escultura de Otto Dumovich, apresentando o maestro com o saxofone, inaugurada em 1996 na Travessa do Ouvidor, em frente onde ficou o Bar Gouveia, fechado anos antes. Outro estátua, do cartunista Ique Woitschach, retrata Pixinguinha de pijamas e está em frente ao Bar da Portuguesa, em Ramos, perto da casa onde morou por três décadas – é inspirada numa foto que mostra o músico com sua mulher e seu cachorro no botequim. Na Lapa, há um painel de 10 metros de altura, na lateral de prédio do Museu da Imagem e do Som (MIS), feito pelo grafiteiro e artista visual Cazé (Fernando Sawaya) retratando Pixinguinha.
E o choro está em toda a parte. Todo dia é dia de choro: às segundas, tem rodas de choro no Flamengo e em Santa Tereza; terça é dia de choro no Bip Bip, em Copacabana; quinta passou a ter roda de choro do Quarteto Urubatan no Quintal do Zico, em Botafogo; sábado é dia do choro do Pixin Bodega, em Laranjeira; no domingo, os chorões ocupam a Praça São Salvador; e um domingo por mês, tem choro no Reduto Pixinguinha, como é conhecido a praça em Olaria, perto da casa onde o maestro morou, na vizinha Ramos. Neste dia 23 de abril de 2025, são os chorões do Reduto Pixinguinha que organizam o trem da samba que sai da central com choro pelos vagões até Ramos e Olaria.
E, também neste dia 23 de abril de 2025, como sempre estão espalhadas pela cidade homenagens a São Jorge, em missas nas igrejas consagradas ao santo, no Centro e em Quintinho, e também na maioria das paróquias e também em feijoadas promovidas para aproveitar a popularidade do santo guerreiro associado a Ogum. Impossível não pensar em divindades neste feriadão carioca – um pouco mais triste com a perda do Papa Francisco. E Pixinguinha também foi assim saudado num samba maravilhoso de Moacyr Luz e Paulo Cesar Pinheiro. “Só quem morre dentro de uma igreja/ vira orixá/ louvado seja, Senhor/ meu santo Pixinguinha”.