Calor extremo mata, mas faltam medidas para minimizar consequências das altas temperaturas

Carioca busca sombra no verão do Rio: ondas de calor ameaçam saúde mas faltam medidas de proteção nas cidades (Foto: Tomaz Silva / Agência Brasil – 27/01/2022)

Ondas de calor são negligenciadas como desastre climático no Brasil, apontam especialistas

Por Ana Carolina Ferreira | ODS 11ODS 13 • Publicada em 5 de abril de 2024 - 09:04 • Atualizada em 10 de abril de 2024 - 09:58

Carioca busca sombra no verão do Rio: ondas de calor ameaçam saúde mas faltam medidas de proteção nas cidades (Foto: Tomaz Silva / Agência Brasil – 27/01/2022)

A sensação de calor na cidade do Rio de Janeiro chegou aos 59,3°C no dia 17 de novembro de 2023, quando Ana Clara Benevides, de 23 anos, morreu num show da cantora internacional Taylor Swift. Ana Clara se reuniu com 60 mil fãs para curtir o evento no Estádio Nilton Santos, mas não conseguiu finalizar a segunda música do repertório. A jovem passou mal, teve três paradas cardiorrespiratórias e hemorragia no pulmão.

Apesar desse evento ser a causa de 20 vezes mais mortes em comparação a deslizamentos de terra, ondas de calor ainda são negligenciadas como desastre; medidas e protocolos para enfrentamento desses eventos não são criados

Renata Libonati
Meteorologista, doutora em Geofísica e pesquisadora da UFRJ

Mais tarde, a causa foi apontada em laudo. O motivo do falecimento de Ana foi exaustão térmica — perda excessiva de sais e líquidos devido ao calor e diminuição do volume de sangue, o que pode gerar sintomas como desmaio e colapso, segundo Manual MSD de conhecimento médico global. No evento, outras mil pessoas desmaiaram devido ao calor extremo em conjunto com a aglomeração de pessoas e falta de acesso à água no show. A tragédia não foi um caso isolado: ondas de calor que afetaram o Brasil entre 2000 e 2018 foram responsáveis pela morte de 48 mil brasileiros, segundo um estudo do Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), divulgado em janeiro deste ano. O número é 20 vezes maior que o de óbitos relacionados com deslizamentos de terra no mesmo período.

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A meteorologista e a doutora em geofísica Renata Libonati, uma das responsáveis pela pesquisa, , explica que o aumento na frequência e intensidade desse evento é reflexo das mudanças climáticas. “Esse incremento de calor na atmosfera leva a um aumento na ocorrência do que chamamos de eventos extremos, como ondas de calor e frio, chuvas, enxurradas e secas. No passado ocorriam uma vez a 50 anos, mas atualmente passam a ocorrer com maior frequência, intensidade e duração”, explica.

Das 14 regiões metropolitanas mais populosas do Brasil analisadas na pesquisa, uma delas é o Rio de Janeiro, estado que vem quebrando recordes de sensação térmica. A capital registrou 62,3°C no dia 17 de março, a maior registrada desde 2014, quando foram iniciadas as medições do Sistema Alerta Rio. Para Renata Libonati, também integrante da Equipe de Especialistas em Monitoramento e Avaliação Climática da Organização Meteorológica Mundial (OMM), áreas urbanas são mais vulneráveis: “esses locais sofrem ainda mais por conta da ilha de calor, que é a diferença entre a temperatura de uma região urbanizada em comparação com a temperatura das áreas mais arborizadas, florestadas ou rurais”.

O calor intenso é questão de saúde pública, visto que a exposição a fatores como umidade, vento e Sol podem resultar em estresse térmico. Os impactos podem ser minimizados se o local for arborizado e o indivíduo estiver devidamente hidratado. Entretanto, segundo avaliação da pesquisadora, as ondas de calor não possuem a atenção do poder público em comparação com outros desastres, mesmo causando a morte de milhares de pessoas: “Apesar desse evento ser a causa de 20 vezes mais mortes em comparação a deslizamentos de terra, ondas de calor ainda são negligenciadas como desastre; medidas e protocolos para enfrentamento desses eventos não são criados”.

Homem se refresca em chafariz durante onda de calor no Rio: cidade tem ações para minimizar impactos (Foto: Tomaz Silva / Agência Brasil (27/01/2022)
Homem se refresca em chafariz durante onda de calor no Rio: cidade tem ações para minimizar impactos (Foto: Tomaz Silva / Agência Brasil (27/01/2022)

Ações municipais podem diminuir impactos do calor na saúde

É importante considerar a quem o calor extremo impacta em maior escala e de que forma a falta de acesso a necessidades básicas como água potável pode atingir grupos mais vulnerabilizados. Resultados do estudo da UFRJ revelam que mulheres, idosos, pessoas negras e aqueles com níveis educacionais mais baixos são os subgrupos populacionais mais afetados. “Essas descobertas evidenciam que os aspectos socioeconômicos e demográficos são fatores importantes a serem considerados pelos formuladores de políticas no Brasil”, aponta a pesquisa.

O município do Rio tem criado projetos sustentáveis para minimizar esses efeitos à população. No mês de março, a prefeitura instituiu medidas para amenizar o calor em favelas e atender a população mais vulnerabilizada em dias de calor extremo. Esse ano, será implantando o programa “Cada Favela, Uma Floresta”, com foco na construção de florestas e restauração no ambiente das comunidades, para prevenir e controlar a ocupação em áreas de risco e recuperar áreas degradadas. A medida, segundo comunicado da prefeitura, gera melhorias no microclima, na qualidade do ar e da água, além de incentivar a eficiência energética e promover a segurança alimentar.

“O programa promove soluções socioambientais em favelas, reconhecendo esses espaços como mais vulneráveis aos efeitos das mudanças climáticas, mas também como espaços de resiliência e vanguarda nas ações de enfrentamento à crise climática”, informa a secretária municipal de Meio Ambiente e Clima do Rio de Janeiro, Tainá de Paula. Segundo Tainá, é preciso que o poder público se comprometa e seja responsável com a pauta, “garantindo que a cidade continue no caminho da mitigação ao passo que promove adaptação, tudo isso guiado pelo princípio ético da promoção da justiça climática”.

A maioria dessas mortes ocorreram na França, mas afetaram outros países como Portugal e Espanha. Esse desastre é uma espécie de divisor de águas, porque foi a partir de 2003 que a mídia, os governos, e a comunidade científica começaram a olhar para o calor com a devida seriedade

Djacinto Monteiro dos Santos
Físico e pesquisador de eventos climáticos extremos

Outra iniciativa é o Programa de Monitoramento Contínuo da Cobertura Vegetal da Cidade do Rio de Janeiro (PMCV-Rio), que visa a implantação de políticas públicas para manutenção do equilíbrio ecológico na Mata Atlântica. O programa também pretende monitorar a cobertura vegetal da cidade. Além disso, a secretária explica que a cidade terá “quatro novos parques, nas Zonas Norte e Oeste — as mais afetadas pelo calor extremo. Os parques Piedade, Oeste, Pavuna e Realengo terão, somados, uma área de mais de 408 mil metros quadrados”.

Para diminuir os impactos do calor no corpo humano, destaca: “outras secretarias têm atuado de maneira diligente, com a reabertura dos chafarizes espalhados pela cidade e, no setor de saúde, no estabelecimento de pontos de hidratação nas unidades de saúde, além de preparo dos profissionais para atender aos casos de enfermidades relacionadas ao calor”.

Planos das cidades não mencionam calor como ameaça

São Gonçalo, segundo município mais populoso do estado, não cita o calor como ameaça natural a ser lidada no Plano Municipal de Contingência de Proteção e Defesa Civil (2023-2024). Na tipificação de ameaças naturais, os três mais recorrentes são deslizamentos, inundações e alagamentos, segundo o documento. Já Duque de Caxias, que segue São Gonçalo como terceiro no ranking de habitantes, possui plano de emergência similar. Foi criado o Plano Verão 2023-2024, documento que “registra o estudo de cenários de risco de desastre e estabelece procedimentos para mobilização preventiva, a partir dos sinais de alerta, alarme e de emergência para resposta à resultante do evento adverso, o emprego das ações de socorro e de auxílio à população vitimada e, também, às ações de reabilitação dos cenários e de minimização de danos e prejuízos”. Novamente, ondas de calor, sensações térmicas e temperaturas elevadas não são prioridade no plano para lidar com desastres.

O plano de contingência de Nova Iguaçu e Niterói para o verão 2023/2024 segue o mesmo padrão. Esse último, no entanto, parece estar mais alerta à necessidade de ações políticas quanto ao calor extremo: Niterói ganhou em março selo de “Cidade Árvore do Mundo” pelo programa Tree Cities of The World. Também climatizou salas de mais de 70% das escolas municipais após a última onda de calor que atingiu o país.

Para a professora da UFRJ Renata Libonati, a falta ou baixa atenção do poder público brasileiro sobre as graves consequências que o calor pode causar está atrelado à uma falsa percepção de que somente a chuva pode ser fatal. “Apesar da alta mortalidade, não se percebe que essas mortes são associadas às ondas de calor. Outros países, principalmente no Hemisfério Norte, já entendem as ondas de calor como um desastre, e isso significa, ter ações de mitigação e adaptação”.

Internacionalmente, há protocolos objetivos na tentativa de mitigar as consequências de altas temperaturas para a população. Um exemplo disso é o estado de Connecticut nos EUA, que em caso de calor extremo, cancela aulas em escolas e abre centros de resfriamento para que residentes encontrem abrigo do calor e se hidratem. Nesta terça-feira, 03/04, autoridades das Filipinas suspenderam as aulas e outras atividades coletivas em virtude do forte calor dos últimos dias na maior parte do país asiático. Temperaturas superiores a 38º C e a alta umidade elevaram a sensação térmica para mais de 42º C. O governo recomendou ainda que as empresas dispensem seus funcionários do trabalho presencial não emergencial durante a onda de calor desta semana.

A Europa começou a ter essa percepção quando uma onda de calor atingiu o continente em 2003 e matou, segundo estimativas, entre 30 à 70 mil pessoas. “A maioria dessas mortes ocorreram na França, mas afetaram outros países como Portugal e Espanha. Esse desastre é uma espécie de divisor de águas, porque foi a partir de 2003 que a mídia, os governos, e a comunidade científica começaram a olhar para o calor com a devida seriedade”, conta o físico Djacinto Monteiro dos Santos, pesquisador de eventos climáticos extremos.

Ele aponta que os protocolos internacionais possuem três pilares: sistemas de alerta precoces; sistema de saúde, que se prepara para receber demandas como doenças cardiovasculares e respiratórias; e sistema de infraestrutura urbana, em escolas, no trabalho, transporte público e abrigos. Para o especialista, “são lições importantes para serem adaptadas ao contexto brasileiro, alinhadas com políticas de redução das desigualdades estruturais do nosso país”.

Ana Carolina Ferreira

Estudante de jornalismo na Universidade Federal Fluminense (UFF). Gonçalense, ou papa-goiaba, apaixonada pelas possibilidades de se contar histórias na área da comunicação. Foi estagiária na Assessoria de Comunicação do Ministério Público Federal e da UFF. Amante da sétima arte e crítica amadora do universo geek.

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