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Baía de Guanabara assiste a decadência do transporte por barcas

Rio de Janeiro desperdiça privilégio das águas calmas por onde circularam, por séculos, os moradores dessas margens

ODS 11 • Publicada em 19 de setembro de 2023 - 08:36

É uma ensolarada tarde de inverno quando cruzo a Baía de Guanabara, de barca, em direção a Niterói, trajeto que não faço desde 2019 – a pandemia nos obrigou a evitar aglomerações e, por consequência, o transporte público. O cenário inspira um clima de passeio mas sou minoria: os passageiros à minha volta estão naquele ida e volta da labuta, preocupados com os horários. O transporte aquaviário devia ser a principal maneira de atravessar a baía, mas as barcas entre Rio e Niterói só saem a cada 20 minutos, intervalo vergonhoso para um transporte de massa.

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As águas calmas da Baía de Guanabara sempre foram estratégicas para os deslocamentos humanos por aqui. Os europeus não haviam nem chegado quando os indígenas e suas canoas circulavam pelas margens da baía e por suas ilhas. Em janeiro de 1502, quando a segunda expedição portuguesa ao futuro Brasil desceu pela costa atlântica, os colonizadores encontraram a baía que acharam ser a foz de um rio (por isso, Rio de Janeiro). Os relatos dos europeus aqui desembarcados davam conta que os indígenas – tupinambás, principalmente – tinham canoas que levavam até 50 pessoas.

Barcas cruzam a Baía de Guanabara: transporte de decadência levava 200 mil passageiros por dia há 60 anos e hoje carrega em média 35 mil (Foto: Oscar Valporto)
Barcas cruzam a Baía de Guanabara: transporte de decadência levava 200 mil passageiros por dia há 60 anos e hoje carrega em média 35 mil (Foto: Oscar Valporto)

Foram as águas abrigadas da Baía de Guanabara, que atraíram os franceses no século XVI; ali atracaram as naus do almirante Villegagnon, incumbido de criar a França Antártica na região de domínio de Portugal. Ao expulsar os franceses, o português Estácio de Sá fundou o Rio de Janeiro e convenceu o cacique temiminó Arariboia, seu aliado indígena na luta contra os invasores, a ocupar o território do outro lado da Baía de Guanabara, futuramente chamado de Niterói.

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A ocupação em torno da baía, facilitada pelas embarcações, tornou o transporte marítimo um hábito. Levantamento em 1779 registrou que 32 embarcações faziam viagens mais ou menos regulares entre a capital do Brasil colônia e o outro lado da Baía de Guanabara. Em 1835, logo depois da antiga Vila Real da Praia Grande ter sido batizada como Niterói e alçada a capital da província, foi inaugurado o serviço regular de passageiros entre as duas cidades, com três embarcações. Ainda no período imperial, multiplicaram-se as embarcações e as linhas: a Companhia de Navegação de Niterói e Inhomirim levava passageiros a três pontos do Rio (Centro, Botafogo e São Cristóvão), além das ilhas do Governador e de Paquetá, a dois ancoradouros em Niterói, e também em pontos da Baixada onde estão hoje as cidades de Caxias e Magé.

Da janela da barca, o Pão de Açúcar e as pista do Aeroporto Santos: águas calmas da Baía de Guanabara são convite à navegação desde que apenas os povos indígenas habitavam o Rio de Janeiro (Foto: Oscar Valporto)

Em 1862, o próprio Pedro II participou da viagem inaugural da Segunda, parte da frota adquirida pela Companhia Ferry, concorrente no transporte marítimo de passageiros. A barca a vapor, com capacidade para 300 pessoas, fazia o trajeto entre Rio e Niterói em 22 minutos – 161 anos depois, a travessia ainda leva quase 20 minutos. Barcas saíam do cais da Prainha, na atual Praça Mauá, ao Porto de Estrela, no município de Magé, onde passageiros eram levados em carruagens até Petrópolis. No fim do século, havia uma integração de modais: barcas levavam passageiros até o Porto de Mauá, às margens da baía, também em Magé, de lá seguiam de trem até Petrópolis.

Durante mais da metade do século XX, empresas privadas seguiram explorando o transporte marítimo na baía – a mais famosa foi a Companhia Cantareira, responsável pelo sistema por quase 70 anos. Mas o serviço foi ficando cada vez pior: a ligação entre Rio e Niterói que chegou a ser de 15 minutos na primeira metade do século passou a ser de quase 40 minutos na década de 1950; linhas regulares para outros pontos da baía foram desaparecendo. Em 1959, Niterói foi palco de um quebra-quebra, a Revolta das Barcas, promovido por passageiros em fúria contra o péssimo serviço. A concessão foi cassada, o sistema estatizado, as barcas encampadas pelo governo federal, que criou uma empresa, a SBTG (Serviços de Transporte da Baía da Guanabara), para cuidar da operação.

A estação das barcas da Praça XV, construída no começo do século passado: travessia regular de passageiros do Rio para Niterói tem quase 200 anos (Foto: Oscar Valporto)

Na década de 1960, o sistema de transporte na Baía de Guanabara levava 200 mil passageiros por dia, quase 6 milhões por mês, mais de 70 milhões por ano – a lotação das embarcações variava entre 500 a 1000 pessoas. Mas vieram seguidamente a inauguração da Ponte Rio-Niterói (desde a década de 1940, havia barcas que transportavam automóveis), as dificuldades financeiras da Conerj, empresa estadual que recebeu o serviço da SBTG, após a fusão da Guanabara e do Rio de Janeiro, e novamente a deterioração dos serviços até as novas concessões à iniciativa privada a partir de 1988.

Desde a eleição de Leonel Brizola em 1982 e a redemocratização do país, os governos do Rio fazem planos para melhorar o serviço como novas linhas para a Ilha do Governador – inclusive entre os aeroportos Santos Dumont e Tom Jobim (galeão) – para pontos da Baixada e, principalmente, para São Gonçalo, segunda cidade mais populosa do estado, do outro lado da baía, e com um péssimo, desgraçadamente péssimo, serviço de transporte público. Nada prosperou.

O Terminal Arariboia, em Niterói: novo prédio construído após destruição da antiga estação das barcas da Cantareira na revolta popular contra o serviço em 1959 (Foto: Oscar Valporto)

A linha entre a estação da Praça XV, construída no início do século XX, e a estação central de Niterói – o Terminal Arariboia, construído após a destruição da chamada Estação Cantareira na Revolta das Barcas de 1959 – é uma das duas que opera diariamente; a outra liga a Praça XV e a Ilha de Paquetá. As linhas Praça XV – Cocotá (Ilha do Governador) e Praça XV – Charitas (outro ponto de Niterói) só funcionam em dias úteis. A ligação com a praia de Charitas é por catamarã e custa R$ 21 – as outras passagens ficam em R$ 7,70.

O serviço é caro, ruim e decadente – a média de passageiros das barcas, que já foi de 200 mil por dia, hoje não chega a 35 mil. E, agora, funciona também de forma precária e transitória: a operadora CCR Barcas anunciou, ainda em 2022, que não tinha interesse na renovação da contrato de concessão que terminou em fevereiro. O governo estadual, que maltrata o transporte público e seus usuários, não conseguiu abrir um novo processo licitatório: um acordo, homologado na Justiça, mantém a CCR Barcas na operação por até mais 24 meses, com direito a indenização de mais de R$ 750 milhões.

A crise no transporte público é um praga nacional, fruto de um modelo insustentável em que a tarifa é fonte única de custeio. Mas fica particularmente doloroso olhar para a crise pela janela dessas barcas onde é possível constatar o privilégio da localização do Rio de Janeiro, onde a Baía de Guanabara, poluída hoje também por dezenas de navios de carga abandonados, poderia ser cenário de linhas de transporte público aquaviário de passageiros.

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