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Apagão paulistano. Ou o samba do privatista doido

Teimosa prova da irracionalidade nacional, a concessão de serviços essenciais ao setor privado tem na incompetente Enel um símbolo revoltante

ODS 11ODS 7 • Publicada em 9 de novembro de 2023 - 09:12 • Atualizada em 13 de novembro de 2023 - 08:12

Sócio da padaria Porto Maria, Baltazar Lisboa mostra os produtos alimentícios estragados por falta de refrigeração com o apagão da Enel. Foto Rovena Rosa/Agência Brasil
Sócio da padaria Porto Maria, Baltazar Lisboa mostra os produtos alimentícios estragados por falta de refrigeração com o apagão da Enel. Foto Rovena Rosa/Agência Brasil

Espécie de ancestral da mãe de todas as polarizações – a política, ainda à espreita, prest’enção querido incauto! –, o duelo de narrativas entre público e privado dominou os anos 1990. Repetia-se com fervor de oração o mantra de que o Estado era incompetente e privatizar garantia o esplendor da eficiência. Assim, a dicotomia – progresso e atraso, perfeição e equívoco, modernidade e anacronismo – espalhou-se como agrotóxico na lavoura.

Por causa da irracionalidade binária, tem gente no escuro há quase uma semana, na maior cidade do Brasil.

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A prometida excelência do setor privado desmoronou a  partir de uma tempestade com granizo e ventos de até 100km/h que varreu São Paulo na tarde da sexta-feira. A tormenta de verão em plena primavera (olha a crise climática aí, gente!) materializou pesadelo para milhões de pessoas, condenadas pela incompetência da concessionária Enel a ficar sem energia elétrica por uma eternidade. A crise iluminou vários aspectos da predatória caça ao lucro – com aval de eleitos para cuidar da população – num serviço essencial à vida contemporânea.

Milhões de vítimas da empresa – filial brasileira da multinacional italiana, herdeira da estatal Eletropaulo, responsável, desde 2018, pelo fornecimento de energia elétrica em 24 municípios da mais populosa região metropolitana do Brasil – amargaram prejuízos irreparáveis. Alimentos se estragaram; mercadorias se perderam; eletrodomésticos se tornaram inúteis; pessoas com mobilidade reduzida não puderam sair de casa, sem condições para descer escadas em andares altos. Tudo culpa da Enel e de seus padrinhos no poder público.

De tão dramático, o martírio dos clientes explodiu em revolta. Terça (7), a rodovia Raposo Tavares, em Cotia, e a Avenida Giovanni Gronchi, na capital, foram bloqueadas em protesto contra o apagão interminável. A manifestação na via paulistana revelou aspecto cruel (e frequente em situações assim): ela separa o endinheirado bairro do Morumbi, onde a luz voltou rapidamente, da favela de Paraisópolis, que jazia às escuras. Porque o “universal” serviço privado chega primeiro a quem paga mais.

E aqui aparece a grande especialidade dos executivos das concessionárias: embrulhados em ternos bem cortados e gravatas caras, desfiam histórias tristes à plateia. De cabelo engomado e adestrados por milionários treinamentos de mídia, empenham vocabulário gorduroso para, no fim, culpar clientes e governos.

Outro personagem surrealista da história, o prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes, apareceu diante da TV com a parolagem de uma “contribuição de melhoria” dos consumidores, para instalar cabos subterrâneos – equipamento banal, antigo até, em cidades administradas com seriedade, mundo afora. O alcaide paulistano sugeriu que os clientes paguem pela obra – e a cara dele nem coçou.

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Certos mesmo, só os boletos da concessionária que, como a morte, chegarão inevitavelmente. Até agora, não se fala de abatimento nas contas pelos (muitos) dias de serviços não prestados. Os prejuízos sofridos pelo apagão vão morar nas calendas; quem quiser que corra atrás no oceano bravio das pequenas causas judiciais. Enquanto isso, a Enel São Paulo – flagrada com caminhões estacionados no pátio enquanto seus clientes mergulhavam no caos – prospera: demitiu 36% de seus funcionários desde 2019 (afinal, inchado é o setor público) e embolsou lucro de R$ 1,4 bilhão em 2022.

O apagão paulistano é apenas o capítulo mais recente do samba do privatista doido que assola o Brasil. Cantado em loas – inclusive pela mídia –, o setor privado tem uma coleção de esqueletos no armário. Produziu, por exemplo, duas das maiores tragédias ambientais de nossa história: os rompimentos das barragens de Fundão, em Mariana (obra da Samarco, propriedade da Vale e da anglo-australiana BHP), que deixou 18 mortos e um desaparecido; e de Córrego do Feijão, em Brumadinho (de autoria da Vale), onde morreram 272 pessoas e três desapareceram. Além das duas cidades, o dano ambiental se espalhou por Minas Gerais, destruindo rios, florestas e comunidades inteiras.

São privados também os horrorosos serviços de transporte cariocas, com destaque para a Supervia, responsável pelos trens na região metropolitana do Rio, martírio cotidiano padrão Enel. (Jamais por acaso, o setor segue estatal em mecas do capitalismo, como Nova York, Londres, Paris e Tóquio.) Os bancos, com lucros estratosféricos, tarifas milionárias e serviços precários, são outro exemplo lamentável. Seguros-saúde – que excluem os idosos e se tornam impossíveis de usar quando mais se precisa – também estão na lista.

Ah, mas o colunista está muito radical, reclamará um defensor das privatizações. O setor público também tem seus pecados; muitos, aliás. O inferno mora na narrativa irracional, apaixonada por um lado e enojada do outro. A ideia neoliberal de ausência do Estado – alicerce do Consenso de Washington, doutrina baseada na liberdade dos mercados – espalhou ruína pelo mundo. Determinados setores, como transporte, saúde e energia não podem estar subordinados à pressão do lucro. Dá errado.

A apagada maior cidade brasileira serve de prova.

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