Mulheres de Colônia não se calam

Abuso sexual em massa no réveillon da cidade alemã torna mais complexa a crise dos refugiados na Europa

Por Helena Celestino | ArtigoODS 1 • Publicada em 22 de janeiro de 2016 - 08:00 • Atualizada em 22 de janeiro de 2016 - 11:50

Em frente à Catedral de Colônia, na Alemanha, manifestantes protestam contra a violência sofrida pelas mulheres
Em frente à Catedral de Colônia, na Alemanha, manifestantes protestam contra a violência sofrida pelas mulheres
Em frente à Catedral de Colônia, na Alemanha, manifestantes protestam contra a violência sofrida pelas mulheres

Aos poucos, as mulheres vão contando o que aconteceu na estação de trem em Colônia, na virada de 2016. Já são 769 queixas feitas à polícia, mas poucas ousam dar o nome e mais detalhes da noite do 31, ainda intimidadas pelas implicações políticas da história que piorou o clima na Alemanha e criou um enorme desconforto na Europa. Ao desembarcarem na cidade com fama de fazer o réveillon mais cool das redondezas, centenas de mulheres enfrentaram intimidações, agressões e abusos sexuais perpetrados por grupos de homens, que tinham entre 20 e 30 anos, a maioria visivelmente vinda do Oriente Médio e Norte da África. “Vou falar, não vou abrir mão dos nossos direitos”, diz uma das surpreendidas pelo “arrastão” na estação de trem.

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Existe um ressurgimento da violência contra a mulher. De casamentos forçados, a abusos domésticos, elas contaram histórias em que eram vítimas da violência de companheiros de viagem, membros da família, traficantes e policiais europeus

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Os relatos são parecidos ao de Lisa, 26 anos, loura e bonita, último ano da faculdade de Odontologia, moradora de Dusseldorf. Ela conta que desembarcou em Colônia, com três amigas, por volta das 23 horas e foi surpreendida por uma massa compacta de homens, só homens, lotando a enorme estação de Colônia.  Logo depois, as quatro foram cercadas por um grupo, foram apalpadas, por mãos que entravam por baixo da saia e entre as pernas delas, amassavam os peitos e a bunda, numa atitude nojenta. “Eles tinham um olhar intrusivo, arrogante, ameaçador, nos emparedaram, não podíamos nos mexer. Em volta não tinha um policial, uma pessoa a quem pedir ajuda”, contou Lisa ao Le Monde. Coladas umas às outras, as quatro levaram meia hora para atravessar os 50 metros até a saída da estação, caminho percorrido sob insultos e mais abusos, ao som de gritos e ameaças. “Usaram a liberdade da Alemanha para fazer o que quisessem com as mulheres.  Quando cheguei à festa de réveillon, parecia irreal, outro planeta”, disse.

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Dessa vez, não é racismo, não dá para desqualificar as denúncias.  Como Lisa, muitas mulheres hesitaram em falar sobre a violência, em solidariedade aos quase um milhão de refugiados vivendo em paz no país da chanceler Ângela Merkel, a primeira chefe de estado a reconhecer a obrigação moral dos europeus de receber os exilados de guerra.  Entre os agressores identificados pela polícia, havia alemães, um americano, um sérvio e a maioria era de refugiados vindos do Oriente Médio e da África. Muitos deles chegaram no último ano, eram cerca de cem, mas mesmo assim representam uma parte ínfima do mais de um milhão de refugiados acolhidos na Europa em 2015. Todas as pesquisas indicam que a criminalidade não aumentou com a chegada deles, mesmo se entram nas estatísticas da violência.  “Não é surpresa que entre um grupo de homens jovens e desacompanhados a taxa de crime seja mais alta do que entre mulheres mais velhas. Eles estão presentes nas estatísticas, mas não é por questões culturais”, constata pesquisa feita pela polícia.

A ressaca do réveillon está longe de acabar, a onda de hostilidade contra os refugiados amplificou-se por toda a Europa, ameaça a união do bloco e sacode a política.  A edição online da revista “Der Spiegel”, por exemplo, foi submersa por comentários cheios de ódio, sendo obrigada a fechar o acesso dos leitores. Na Finlândia, milícias ligadas a extremistas estão patrulhando cidades pequenas, arvorando-se em protetores das mulheres brancas.

Muito antes do trauma de Colônia, a extrema direita já intoxicava o debate político prevendo “uma epidemia de estupros”, e a esquerda tentava camuflar a tensão entre uma sociedade laica, com leis liberais, culto à liberdade individual e a visão do mundo patriarcal, religiosa e conservadora trazida por muitos dos recém-chegados.

“Esta conversa terá de existir na sociedade. Os políticos falharam, não conseguiram aplacar o sentimento de medo da opinião pública europeia nem debater com clareza a questão dos refugiados. Criou-se um vácuo, preenchido pelos movimentos contra a imigração”, analisou Alexander Betts, o diretor do centro de estudos de refugiados de Oxford.

Tinha um elefante na sala e todos fingiam não ver.  Era mais ou menos em silêncio que a Escandinávia estava “ensinando” aos refugiados como tratar bem as mulheres nos países onde decotes e saias curtas, beijo na boca em público e festa em bares não são condenáveis. Muito pelo contrário, são direitos a serem respeitados, martelavam professores nos polêmicos programas de “educação sexual” para refugiados muçulmanos. Estas aulas começaram a ser dadas discretamente na Finlândia, Noruega, Dinamarca e na região da Baviera alemã, sob críticas de ONGS que viam o risco de criar um estigma ainda maior para os recém-chegados. Mas, aos poucos, a “reeducação” tornou-se obrigatória e o curso ministrado junto com o ensino da língua local.

“Forçar alguém a fazer sexo não é permitido na Noruega, mesmo se você é casado com essa mulher”, dizia a professora. “Não é religião que dita leis do país, mas a constituição tem de ser obedecida por todos”, reforçava o manual.

“O maior perigo é o silêncio”, alerta um psicólogo ouvido pelo “New York Times”, lembrando a dificuldade da transição de uma cultura da burka para a da minissaia.

Os ataques de Colônia são horríveis. Foram um golpe duro para o público comprometido com a solidariedade aos refugiados na Europa. “Eu dei a metade do meu guarda-roupa para os imigrantes, os mesmos que atacaram a minha namorada”, disse um indignado jovem alemão que não conseguiu evitar o assédio à sua companheira.  A violência sexual simbolicamente reforça o grande medo do Islã, a mitologia da ameaça representada pelos muçulmanos às liberdades individuais de homens e mulheres europeus.

Puro fantasma, dizem imigrantes, assistentes sociais, psicólogos na Alemanha. As mulheres fugindo da guerra a caminho da Europa também têm histórias de violência a contar, exercida por barqueiros, guardas de fronteira, carcereiros, na longa e perigosa travessia em direção à Alemanha.  Muitos deles eram europeus.  Uma delas contou que foi deixada desacordada após apanhar de um guarda na Hungria por não ter cedido ao assédio sexual.  Outra foi obrigada a pagar com sexo a dívida do marido com o barqueiro da travessia entre a Turquia e a Grécia.

“Existe um ressurgimento da violência contra a mulher. De casamentos forçados, a abusos domésticos, elas contaram histórias em que eram vítimas da violência de companheiros de viagem, membros da família, traficantes e policiais europeus”, diz o “New York Times”, depois de entrevistar dezenas de pessoas para uma reportagem.

Guerra e terrorismo em casa, perigos no mar, a exploração dos traficantes rondam os caminhos dos muitos milhares de migrantes que tentam uma vida nova na Europa, mas os perigos enfrentados pelas mulheres são imensamente maiores. Por motivos diversos, é assim na Europa, na África e no Oriente Médio e… aqui.

A pergunta que não quer calar. Por que todos os europeus ficaram preocupadíssimos com a questão da mulher de uma hora para a outra?  As feministas alemãs citam políticos que deixaram anos na gaveta o projeto para tornar mais dura a lei contra estupro e, subitamente, defendem punições mais severas para abusos sexuais. Foi escandaloso o ataque às mulheres no reveillon em Cologne e os culpados têm de ser identificados e punidos. Mas as mulheres são vítimas de abuso sexual lá como aqui. É puro racismo agir como se só refugiados  cometessem atos de violência contra a mulher. As mulheres brasileiras falaram sobre isso em comoventes depoimentos na hashtag #primeiroassédio?

Helena Celestino

Jornalismo é um vício assumido, é difícil me imaginar longe da notícia. Acostumei a viver com o dedo na tomada: aprendi isto trabalhando, viajando pelo mundo e sendo por muitos anos editora executiva do Globo.

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