“Nossa briga é para que as coisas sejam justas”. A afirmação é de Daniel Scott, vice-presidente da Associação das Escolas de Samba de Canoas (AESC). A entidade – que representa oito escolas do município da região metropolitana de Porto Alegre – denunciou a tentativa da Secretaria de Cultura e Turismo de Canoas de proibir que enredos do carnaval apresentassem temas relacionados com a cultura e as religiões afro-brasileiras e a comunidade LGBTQIA+.
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A denúncia motivou a abertura de inquérito pelo Ministério Público Federal (MPF) para investigar as declarações do secretário Pinheiro Neto em reunião com a AESC no dia 29 de janeiro. Nesse encontro, o gestor teria condicionado a cessão do Parque Eduardo Gomes – local público – para a realização dos desfiles das escolas, desde que fossem seguidas as restrições nos enredos.
Após a mobilização das escolas de samba, a prefeitura de Canoas divulgou nota em que se coloca a disposição para colaborar com as festividades e liberar o parque para a realização do desfile. O texto menciona a impossibilidade de destinar recursos para o carnaval, devido à crise na área de saúde do município.
Depois de receber a denúncia da AESC, a Federação Nacional das Escolas de Samba (Fenasamba) publicou nota de repúdio em que defende os direitos dos carnavalescos de Canoas. “O Carnaval, a maior manifestação cultural do povo brasileiro, é uma festa preta, de resistência, de preservação de nossa ancestralidade, democrática e inclusiva. Não iremos permitir que atitudes como essas calem nossa voz e silenciem nossos tambores”, afirma trecho da nota.
A gente precisa buscar mais respeito e valorização, porque o Carnaval é um dispositivo que tira as pessoas da vulnerabilidade
Como parte do movimento contra o racismo e a intolerância religiosa no carnaval de Canoas, a AESC convocou uma manifestação para esta quarta-feira (26/02) prevista para iniciar às 16h, em frente à prefeitura de Canoas. No mesmo dia, a partir das 18h, uma audiência pública vai debater o caso no plenário da Câmara Municipal. “A gente vê como uma opressão e uma tentativa de finalizar com essa cultura do carnaval”, aponta Daniel Scott.
Em vídeo publicado nas redes sociais após a repercussão da denúncia, o secretário Pinheiro Neto negou as acusações. “A nota publicada altera uma fala minha sobre a necessidade absoluta de respeito a todas as religiões”, afirmou. Em nota, a administração de Canoas – comandada pelo prefeito Airton Souza (PL) – declarou que “preza pela liberdade, o que inclui a livre manifestação artística, cultural e religiosa no Carnaval”.
Presente na reunião do dia 29, Daniel Scott descreve a forma como o assunto foi tratado e a origem da polêmica com uma referência feita a um bloco de carnaval de Porto Alegre, sem ligação nenhuma com as escolas de samba de Canoas.
“O secretário abordou assuntos políticos – que não eram do nosso interesse – e disse que as escolas não poderiam citar nos seus enredos as temáticas afro sobre Exus, Pombagiras e a temática LGBT. O motivo seria a apresentação de um bloco lá na Cidade Baixa que, em certo momento, mostrou a figura de um Jesus Cristo de biquíni em cima de uma árvore. Só que aquilo não tinha nada a ver com as escolas de samba”, conta o vice-presidente da AESC.
Luta em defesa do samba
Kaxitu Ricardo Campos, presidente da Fenasamba, revela ter procurado Pinheiro Neto para conversar e ouvir a versão do secretário. “Primeiro ele disse que não teria recurso para o carnaval. Depois, quando a Liga e as escolas de samba pediram o parque, ele teria colocado que não faria cessão para entidade que agredisse qualquer religião”, descreve o presidente da Fenasamba, que representa mais de 90 ligas de samba em 19 estados brasileiros.
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Veja o que já enviamosKaxitu enfatiza que as escolas de samba não têm qualquer histórico de agressão contra outras religiões, mas sim de celebrar as entidades espirituais afro-brasileiras. “Como uma instituição que defende as características da escola de samba como patrimônio, nós temos que lutar contra a intolerância e contra o racismo”, acrescenta.
São bairros inteiros que participam das escolas de samba e que ficam na expectativa do carnaval acontecer
A justificativa apresentada pela prefeitura de Canoas sobre a necessidade de investir na saúde também é questionada pela Fenasamba e pela AESC. Isso porque a origem dos repasses de recursos de cultura e saúde aos municípios é diferente, o que inviabiliza a simples transferência de verba de uma área para outra.
Para Daniel Scott, as declarações da secretaria são contraditórias e possuem ligação com o contexto político local, marcado pelo avanço da extrema direita. “Dizer que não vai fazer o Carnaval ou qualquer outra atividade, porque vai investir na área da saúde é uma boa politicamente, são votos garantidos”, comenta o carnavalesco. Segundo ele, nos últimos anos o carnaval de Canoas tem perdido apoio público, em um processo de marginalização e minimização.
Inicialmente, o desfile de carnaval estava marcado para o dia 5 de abril. Porém, por conta de problemas relacionados ao financiamento e às reviravoltas na liberação do espaço, a nova data prevista é o dia 17 de maio.
Carnaval movimenta a economia local
Nenê da Harmonia, Rosa Dourada, Unidos Guajuviras, Escola de Samba do Soares, Pérola Negra, Aquarela do Samba, Tradição de Niterói e Império da Mathias são as escolas que fazem parte da AESC. Cada uma delas conta com cerca de 400 componentes. Além disso, a organização dos desfiles movimenta a economia local do município, principalmente em bairros periféricos.
“A gente precisa buscar mais respeito e valorização, porque o Carnaval é um dispositivo que tira as pessoas da vulnerabilidade. A gente dá uma profissão, ensina, somos uma escola de samba e aprendizado”, pontua Daniel Scott. Ele recorda que, em 2024, os dois eventos realizados como parte do “Carnaval Popular de Canoas” reuniram cerca de 20 mil pessoas.
O vice-presidente da AESC destaca o papel que a festa possui para as comunidades, em especial, após os desafios enfrentados com as enchentes no último ano. “São bairros inteiros que participam das escolas de samba e que ficam na expectativa do carnaval acontecer”, frisa Daniel. O principal objetivo dos carnavalescos de Canoas é simples: ter o direito de organizar o desfile e festa sem ter sua cultura e suas tradições atacadas.
A Secretaria de Cultura e Turismo de Canoas foi procurada pela reportagem para se manifestar sobre a situação, mas até a publicação ainda não havia dado resposta.