Carnaval: escolas de samba denunciam racismo e intolerância religiosa no sul

Ministério Público Federal abriu inquérito para investigar proibição a enredos sobre religiões afro-brasileiras e comunidade LGBT+ no carnaval de Canoas

Por Micael Olegário | ODS 16 • Publicada em 26 de fevereiro de 2025 - 09:19 • Atualizada em 26 de fevereiro de 2025 - 10:32

Apresentação da escola Rosa Dourada, em Canoas: escolas de samba lutam pelo direito de realizar sua festa; carnaval em Canoas reúne diversas comunidades e bairros (Foto: Guilherme Pereira/Prefeitura Municipal de Canoas – 30/04/2023)

“Nossa briga é para que as coisas sejam justas”. A afirmação é de Daniel Scott, vice-presidente da Associação das Escolas de Samba de Canoas (AESC). A entidade – que representa oito escolas do município da região metropolitana de Porto Alegre – denunciou a tentativa da Secretaria de Cultura e Turismo de Canoas de proibir que enredos do carnaval apresentassem temas relacionados com a cultura e as religiões afro-brasileiras e a comunidade LGBTQIA+.

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A denúncia motivou a abertura de inquérito pelo Ministério Público Federal (MPF) para investigar as declarações do secretário Pinheiro Neto em reunião com a AESC no dia 29 de janeiro. Nesse encontro, o gestor teria condicionado a cessão do Parque Eduardo Gomes – local público – para a realização dos desfiles das escolas, desde que fossem seguidas as restrições nos enredos.

Após a mobilização das escolas de samba, a prefeitura de Canoas divulgou nota em que se coloca a disposição para colaborar com as festividades e liberar o parque para a realização do desfile. O texto menciona a impossibilidade de destinar recursos para o carnaval, devido à crise na área de saúde do município. 

Depois de receber a denúncia da AESC, a Federação Nacional das Escolas de Samba (Fenasamba) publicou nota de repúdio em que defende os direitos dos carnavalescos de Canoas. “O Carnaval, a maior manifestação cultural do povo brasileiro, é uma festa preta, de resistência, de preservação de nossa ancestralidade, democrática e inclusiva. Não iremos permitir que atitudes como essas calem nossa voz e silenciem nossos tambores”, afirma trecho da nota.

A gente precisa buscar mais respeito e valorização, porque o Carnaval é um dispositivo que tira as pessoas da vulnerabilidade

Daniel Scott
Vice-presidente da Associação das Escolas de Samba de Canoas

Como parte do movimento contra o racismo e a intolerância religiosa no carnaval de Canoas, a AESC convocou uma manifestação para esta quarta-feira (26/02) prevista para iniciar às 16h, em frente à prefeitura de Canoas. No mesmo dia, a partir das 18h, uma audiência pública vai debater o caso no plenário da Câmara Municipal. “A gente vê como uma opressão e uma tentativa de finalizar com essa cultura do carnaval”, aponta Daniel Scott.

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Em vídeo publicado nas redes sociais após a repercussão da denúncia, o secretário Pinheiro Neto negou as acusações. “A nota publicada altera uma fala minha sobre a necessidade absoluta de respeito a todas as religiões”, afirmou. Em nota, a administração de Canoas – comandada pelo prefeito Airton Souza (PL) – declarou que “preza pela liberdade, o que inclui a livre manifestação artística, cultural e religiosa no Carnaval”.

Presente na reunião do dia 29, Daniel Scott descreve a forma como o assunto foi tratado e a origem da polêmica com uma referência feita a um bloco de carnaval de Porto Alegre, sem ligação nenhuma com as escolas de samba de Canoas. 

“O secretário abordou assuntos políticos – que não eram do nosso interesse – e disse que as escolas não poderiam citar nos seus enredos as temáticas afro sobre Exus, Pombagiras e a temática LGBT. O motivo seria a apresentação de um bloco lá na Cidade Baixa que, em certo momento, mostrou a figura de um Jesus Cristo de biquíni em cima de uma árvore. Só que aquilo não tinha nada a ver com as escolas de samba”, conta o vice-presidente da AESC.

Luta em defesa do samba

Kaxitu Ricardo Campos, presidente da Fenasamba, revela ter procurado Pinheiro Neto para conversar e ouvir a versão do secretário. “Primeiro ele disse que não teria recurso para o carnaval. Depois, quando a Liga e as escolas de samba pediram o parque, ele teria colocado que não faria cessão para entidade que agredisse qualquer religião”, descreve o presidente da Fenasamba, que representa mais de 90 ligas de samba em 19 estados brasileiros.

Kaxitu enfatiza que as escolas de samba não têm qualquer histórico de agressão contra outras religiões, mas sim de celebrar as entidades espirituais afro-brasileiras. “Como uma instituição que defende as características da escola de samba como patrimônio, nós temos que lutar contra a intolerância e contra o racismo”, acrescenta.

São bairros inteiros que participam das escolas de samba e que ficam na expectativa do carnaval acontecer

Daniel Scott
Vice-presidente da Associação das Escolas de Samba de Canoas

A justificativa apresentada pela prefeitura de Canoas sobre a necessidade de investir na saúde também é questionada pela Fenasamba e pela AESC. Isso porque a origem dos repasses de recursos de cultura e saúde aos municípios é diferente, o que inviabiliza a simples transferência de verba de uma área para outra.

Para Daniel Scott, as declarações da secretaria são contraditórias e possuem ligação com o contexto político local, marcado pelo avanço da extrema direita. “Dizer que não vai fazer o Carnaval ou qualquer outra atividade, porque vai investir na área da saúde é uma boa politicamente, são votos garantidos”, comenta o carnavalesco. Segundo ele, nos últimos anos o carnaval de Canoas tem perdido apoio público, em um processo de marginalização e minimização.

Inicialmente, o desfile de carnaval estava marcado para o dia 5 de abril. Porém, por conta de problemas relacionados ao financiamento e às reviravoltas na liberação do espaço, a nova data prevista é o dia 17 de maio.

Foto colorida de desfile das escolas de samba de Canoas. Na imagem, dois jovens aparecem em primeiro plano, uma menina com uma bandeira e um menino com um terno que aparece de costas e olhando para ela
Desfile da escola de samba Nenê da Harmonia: Carnaval de Canoas mobiliza diversas pessoas e movimenta a economia local (Foto: Renan Caumo/Prefeitura Municipal de Canoas – 18/03/2024)

Carnaval movimenta a economia local

Nenê da Harmonia, Rosa Dourada, Unidos Guajuviras, Escola de Samba do Soares, Pérola Negra, Aquarela do Samba, Tradição de Niterói e Império da Mathias são as escolas que fazem parte da AESC. Cada uma delas conta com cerca de 400 componentes. Além disso, a organização dos desfiles movimenta a economia local do município, principalmente em bairros periféricos.

“A gente precisa buscar mais respeito e valorização, porque o Carnaval é um dispositivo que tira as pessoas da vulnerabilidade. A gente dá uma profissão, ensina, somos uma escola de samba e aprendizado”, pontua Daniel Scott. Ele recorda que, em 2024, os dois eventos realizados como parte do “Carnaval Popular de Canoas” reuniram cerca de 20 mil pessoas.

O vice-presidente da AESC destaca o papel que a festa possui para as comunidades, em especial, após os desafios enfrentados com as enchentes no último ano. “São bairros inteiros que participam das escolas de samba e que ficam na expectativa do carnaval acontecer”, frisa Daniel. O principal objetivo dos carnavalescos de Canoas é simples: ter o direito de organizar o desfile e festa sem ter sua cultura e suas tradições atacadas.

A Secretaria de Cultura e Turismo de Canoas foi procurada pela reportagem para se manifestar sobre a situação, mas até a publicação ainda não havia dado resposta.

Micael Olegário

Jornalista formado pela Universidade Federal do Pampa (Unipampa). Gaúcho de Caibaté, no interior do Rio Grande do Sul. Mestrando em Comunicação na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Escreve sobre temas ligados a questões socioambientais, educação e acessibilidade.

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